quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Por trás da coluna de Ancelmo Gois


Uma das mentes mais criativas do Globo

Bernardo de la Peña é um jornalista de 35 anos que tem um vasto histórico de serviços prestados ao jornal O Globo no campo de política e economia. Ele já venceu o Prêmio Esso duas vezes, em 2001 e 2002. Hoje é uma sexta-feira, exatamente o dia em que é preciso fechar as edições do jornal de sábado e de domingo. Pelo olhar compenetrado em direção ao computador, imagina-se que Bernardo esteja, mais uma vez, correndo contra o tempo para levar ao leitor uma notícia envolta pela seriedade que os assuntos de política e economia requerem. Que nada. Ele estava buscando, avidamente, a imagem de um selo de Tuvalu para sair do lado direito da coluna de Ancelmo Gois no domingo, dia 19 de setembro de 2010.

Mais tarde, Ancelmo iria sair de sua pequena sala, a mais ou menos três metros da mesa de Bernardo, para dizer: “Sabe o lado direito do
domingo? Eu quero uma ilustração tropical, o cara que planta bananas, uma coisa assim tipo Tropicália. A única foto é o selo, o resto eu preferia que fossem desenhos.” Ancelmo descreve a ilustração de sua preferência com gestos engraçados, entrelaçando os braços como uma Carmen Miranda desengonçada. O conteúdo da nota em que trabalharam Bernardo e o setor de arte continuou enigmático para mim. Faltando poucos minutos para a meia noite, com a redação quase vazia, Aydano André Motta, que fazia as vezes de editor da coluna (Marceu Vieira, o real editor, estava de férias), vai à impressora da redação buscar uma cópia de altíssima qualidade da coluna de domingo para mostrar ao chefe. No lado direito, trata-se de três notinhas falando sobre os lugares mais exóticos onde o presidente Lula construiu embaixadas: Tuvalu, arquipélago situado na Oceania, Uagadugu, capital de Burkina Faso, e Saint George’s, capital da ilha caribenha Granado. A ideia veio de Ancelmo e demonstra o brilhantismo e criatividade que faz de sua coluna uma das mais lidas do país e a página de anúncios mais cara do jornal O Globo.

Os quatro jornalistas comandados por Ancelmo Gois são considerados por ele “a melhor equipe de coluna do Brasil”. Marceu Vieira, editor da coluna do impresso, Aydano André Motta, editor do blog, Bernardo de la Peña e Ana Cláudia Guimarães realmente se complementam. Marceu e Aydano são dois cariocas típicos. Amigos desde os tempos de faculdade, os dois dividem a paixão pelo futebol e pelo samba. Marceu, inclusive, acaba de lançar seu CD de música brasileira sob o título Edição do autor. Aydano adora relembrar o dia em que foi cobrir o desfile do grupo E do carnaval carioca e, como Lula, costuma fazer metáforas futebolísticas. Bernardo não é muito fã de futebol, mas é fundamental para a coluna por seus conhecimentos de política e economia. Ana Cláudia trata de dar o toque feminino que não pode faltar. Para Ancelmo, ela é a “pitbull da notícia”. “Poucos jornalistas são tão fuçadores de notícia como ela”, elogia o chefe.

"A melhor equipe de coluna", segundo Ancelmo

Tratar de assuntos variados é uma lei seguida à risca. Ancelmo conta que prefere, por exemplo, ter três notas boas de um assunto e uma não tão boa de outro, do que ter quatro ótimas notas de um assunto só e deixar de tocar em alguma área de interesse. “Na coluna tem que se fazer uma mistura que você ache que vai agradar todo tipo de leitor. O leitor fascinado por televisão vai amanhã ver uma foto das pessoas de televisão, o que é fascinado por política vai ter uma ou duas notas, o que gosta de economia também, enfim, o sucesso da coluna é botar um pouco de cada”, explica ele.

Ancelmo Gois é um indivíduo estranhamente relaxado para o ambiente frenético de um jornal. Ao chegar à redação, por volta das 15h, logo o vejo sentado em uma cadeira reclinável, de pernas cruzadas, lendo a Folha de São Paulo. Ele costuma chegar à redação entre 10h e 11h e nunca sai antes da 21h. Aydano, meu tutor na redação do Globo, interrompe a leitura de Ancelmo para apresentar-me a ele. Sem hesitar, Ancelmo me estende a mão para um cumprimento, externando, logo no primeiro contato, toda a gentileza que é sua marca registrada: “Seja bem-vindo! Fique bem à vontade aí!”

Depois que terminou de descansar o seu almoço, o dono da coluna voltou para a sua sala. Naquele momento, Ana Cláudia Guimarães abria espaço na mesa que estava dividindo com Aydano para sua quentinha de risoto de camarão. Já eram quase 15h30 e Ana ainda não havia almoçado. Quando Aydano pergunta se está tudo bem, ela responde que sim, mas que ainda não conseguiu nenhuma nota. Apesar de raramente ir às ruas em seu trabalho para a coluna, Ana se divide entre o telefone e o e-mail em busca de informações valiosas que vêm de suas tantas fontes. A rotina, naturalmente estressante, se agrava ainda mais quando ela precisa resolver, por telefone, os problemas escolares de seu filho Francisco, de 7 anos.

Ana diz que não sente falta de ir às ruas, explicando que de vez em quando faz reportagens para outras editorias. Duas semanas antes de conversarmos ela havia feito uma matéria para o caderno “Ela”. “Viro amiga das pessoas por telefone. Tenho uma fonte há dez anos, mas a gente nunca se viu”, conta ela, única remanescente dos tempos em que a coluna pertencia a Ricardo Boechat. A identidade dessas fontes, inclusive, é cuidadosamente protegida. “Você não está anotando o nome das pessoas que aparecem no meu e-mail não, né?”, pergunta ela com um olhar de preocupação.

Todo esse cuidado vem de cima: Ancelmo é meticuloso em seu ofício. Ele checa os fatos várias vezes e não revela algumas de suas fontes nem aos que trabalham com ele na coluna. A título de exemplo, Aydano conta o que aconteceu no dia em que eles publicaram a informação que mais rendeu acessos ao blog da coluna: as sedes da Copa de 2014 no Brasil. No dia 29 de maio de 2009, uma fonte ligou para Aydano de Nassau, nas Bahamas, onde a Fifa decidia as cidades brasileiras que sediarão a Copa em 2014, e contou que as três cidades que faltavam ser divulgadas seriam Cuiabá, Manaus e Natal. Eis então um grande furo. Mas Aydano esbarrou na desconfiança do chefe. Ancelmo ligou para uma de suas fontes secretas para confirmar a informação, mas mesmo com ela confirmada hesitou em publicar, com medo de errar. Convencido por Aydano, a nota foi ao ar no blog da coluna às 18:17h, muitas horas depois de receberem a informação. A coluna de Ancelmo foi a primeira a publicar o fato que, dois dias depois, foi confirmado pela Fifa.

De sua mesa, decorada com miniaturas de personagens que ele adora, como Padre Cícero e Cartola, Ancelmo explica a origem de seus cuidados: “80% do tempo da gente é dedicado a segurar a pressão lá de fora. Eu recebo mais de mil e-mails por dia.” Não só e-mails. Segundos antes, Ancelmo havia falado no telefone com uma mulher que, de acordo com ele, estava muito nervosa por conta de uma nota que saiu na coluna naquele mesmo dia sobre o despejo de sua família, “inquilina do estacionamento e da antiga bilheteria do Hipódromo da Gávea.” Com uma doçura desconcertante e seu sotaque que demonstra a origem nordestina (especificamente de Frei Paulo, no Sergipe, cidade frequentemente mencionada na coluna), Ancelmo pede que ela ligue depois. Ele chega a ouvi-la um pouco, repete “Entendi” uma dezena de vezes e se despede dizendo: “Um beijo no seu coração.” As reclamações da leitora não tinham fundamento, afinal, a informação era verdadeira, mas Ancelmo surpreende pela gentileza, carinho e simplicidade (ele pergunta o nome dela e depois diz “Oi, querida. Meu nome é Ancelmo”, como se ela não soubesse com quem falava).

Ancelmo em sua mesa irreverente como ele

O jeito carinhoso pelo qual Ancelmo trata Marceu, Aydano, Bernardo e Ana Cláudia é certamente um dos principais motivos para que os quatro queiram trabalhar na coluna em vez de ir às ruas fazer reportagens. Marceu, por exemplo, me responde que não sabe se gostaria de trabalhar na coluna caso seu chefe não fosse Ancelmo Gois. Ele trabalha com Ancelmo há mais de 20 anos. Além do Globo, eles estiveram juntos na Veja e no Jornal do Brasil. O carinho é recíproco. Ao detalhar as qualidades de sua equipe, Ancelmo cobre Marceu de elogios. Para ele, a graça da coluna deve-se muito ao seu editor. Um exemplo é a palavra “saliência”, que costuma ser usada na coluna. A palavra, como várias outras expressões, vem do repertório de Marceu. Ancelmo, em uma visita à Academia Brasileira de Letras, foi agraciado com uma condecoração por resgatar a expressão antiga. Ele, é claro, fez questão de dar os créditos a Marceu. Outro elogio que Ancelmo faz é à qualidade do texto de Marceu Vieira. Além de jornalista, Marceu é escritor e compositor. Não é novidade que ele lide bem com as palavras. Para Ancelmo, mais do que isso, o seu texto é um dos melhores da imprensa brasileira.

Aydano e Marceu, amigos desde os tempos de faculdade

O jeito de Ancelmo Gois realmente é único. Ele senta em sua cadeira e começa a analisar os vários papéis amontoados sobre a mesa. Ao descartá-los, ele os joga para debaixo da mesa, no chão, sem qualquer cerimônia. Quando Aydano confirma com ele a imagem de sábado, Ancelmo diz, de um jeito jocoso que lhe é típico, “Vai ser um negócio desses aí, um bicho desses...” Mas não confunda sua peculiaridade com desleixo. Na hora de escolher a figura de verdade, Ancelmo se reúne com seu time de repórters e dá palpites, pede a opinião de um, de outro, e toma a decisão final, sempre sua. Essa pequena reunião costuma acontecer por volta das 19h. As imagens da coluna de Ancelmo Gois são, 90% das vezes, colaboração do leitor.

Colaboração, inclusive, é uma palavra fundamental para o fazer jornalístico. E colaborar para a coluna de Ancelmo Gois não só é uma honra como um prazer para muita gente. Ancelmo anda com desembaraço na redação onde trabalha há nove anos. É respeitado e adorado por seus colegas. Seu nome transmite prestígio. E eu testemunhei uma história que ilustra o significado dele para o jornal. No dia seguinte à minha visita à redação, Ancelmo publicou no alto do lado esquerdo de sua coluna, com chamada na primeira página do jornal, a informação de que em Janeiro de 2011 o governo do estado do Rio de Janeiro ocuparia a Rocinha para implantar uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Essa informação veio de um modo curioso. Na reunião que define a capa do jornal do dia seguinte, Helena Celestino, editora executiva do jornal, conta que o governador Sérgio Cabral, que havia ido ao prédio do Globo naquele dia para ser sabatinado, disse a ela que a Rocinha seria ocupada em janeiro do ano seguinte. Depois de contar, Cabral pediu que ela guardasse segredo. “Eu não contei para ninguém”, explica ela “Só para o Ancelmo!”

“Aqui no Globo eu sou muito mimado”, conta um Ancelmo Gois sorridente. Ao mesmo tempo, Marceu Vieira, que nessa ocasião já havia voltado das férias, fixa no computador o mesmo olhar compenetrado de Bernardo de La Peña. Dessa vez, ele não buscava um selo de Tuvalu. Ele estava selecionando no acervo de fotos do jornal uma imagem de Beth Carvalho, uma daquelas pessoas que Ancelmo adora colocar na coluna porque representa bem o Rio de Janeiro. Enquanto toda a mídia dava foco a Dilma Rousseff no ato de apoio de artistas e intelectuais à sua candidatura à Presidência da República, Ancelmo notou que lá no meio estava Beth Carvalho, ainda em cadeira de rodas, fazendo sua primeira aparição pública em um ano e dois meses. No lado direito da coluna do domingo, 24 de outubro, lá estava a fotografia de Beth Carvalho e uma entrevista feita por Marceu Vieira onde a sambista explica os problemas de saúde que a fizeram ficar fora dos palcos por tanto tempo e fala sobre o futuro da carreira. Mais uma vez, a ideia é fruto dos olhos atentos do experiente jornalista de Frei Paulo que imprime todos os dias nas páginas do jornal O Globo o seu jeito carinhoso e engraçado e seu amor pelo Rio de Janeiro. Que a criatividade do pessoal da coluna nunca acabe e que ela continue sendo a coluna mais carioca do Brasil. Vamos torcer, vamos cobrar!

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Entrevista com Emily Bell, do Tow Center for Digital Journalism

O ano de 2010 foi especial para o curso de Jornalismo da Universidade de Columbia, considerado o melhor do mundo. Em 2010, a universidade nova-iorquina montou o Tow Center for Digital Journalism. O centro de estudos de jornalismo digital que promete ser um dos mais avançados do mundo, desenvolverá pesquisa e capacitação na área para a qual o jornalismo está se expandindo. O primeiro artigo científico foi publicado em setembro de 2010. O centro foi iniciado com investimentos de 10 milhões de dólares, dos quais 5 milhões vieram do Tow Institute em fevereiro de 2008. O Tow Center será dirigido por Emily Bell (http://twitter.com/@emilybell), experiente jornalista inglesa que criou o site http://mediaguardian.co.uk e foi editora de conteúdo digital do mesmo Guardian, um dos maiores jornais do mundo.

No vídeo abaixo, Emily Bell fala sobre o jornalismo e as novas tecnologias. Entre outras perguntas, ela explica exatamente o que é jornalismo digital, como moderar comentários, fala sobre textos de alta qualidade na web etc.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Dança de Salão

Mão direita que soava de tensão nas costas da dama. Perna esquerda dele pra frente, a direita dela para trás, a esquerda dele volta conforme a direita dela vai à frente. Para ele os passos vão por inércia, para ela ainda não. Aquela era a primeira aula de bolero dela. No entanto, o nervosismo tomava conta era dele, experiente professor de dança de salão. Nunca fora tão bom trabalhar em uma sala toda espelhada. A observação daquele corpo divinamente esbelto mover-se alimentava a sua imaginação de tal modo que seu coração batia acelerado. A sua dúvida era se puxava a moça para mais perto de si seguindo seu instinto de sentir aquele corpo junto ao seu ou não, já que ela sentiria seu coração bater mais forte e poderia estranhar. Antes que ele pudesse decidir, um casal de idosos o interrompeu para pedir ajuda em um passo. Ele sorriu para a sua parceira e pediu que esperasse um minuto, ela sorriu de volta dando a entender que tudo bem. Que sorriso arrebatador! Em 15 anos como professor ele nunca havia visto uma mulher com beleza tão enlouquecedora naquela academia de dança.

Após explicar o passo para os velhinhos, notou que um espertalhão havia roubado sua dama. Era o gordinho que já frequentava as aulas havia três meses e mal sabia fazer um cruzado. Como ele ousava roubar a dama do professor? Mal sabia ele que ser mestre tem lá as suas vantagens. Não precisou observá-los por 10 segundos para identificar um erro. Educadamente, ele interrompeu a dança dos dois e mostrou ao gordinho como deveria segurar a dama. Malandramente, o rapaz estava com a mão muito para baixo. Novato! Após sutilmente humilhá-lo, ele se deu conta de que era hora de terminar a aula. Deu os recados pertinentes ao grupo e os liberou, preparado para ir falar com aquela que havia se tornado a sua aluna preferida. O plano não deu certo. 1) Ao acabar a aula, especialmente naquele dia, seis alunos resolveram cercá-lo para tirar dúvidas. 2) O gordinho, que àquela altura do campeonato suava em bicas, foi puxar papo com ela, que sorria sem graça.

Quase 48 horas de espera torturante se passaram até que chegasse o momento dele reencontrá-la. Faltando 15 minutos para a aula ele olhou pela janela da academia de dança para ver se a via chegar. Ficou alguns minutos olhando, até que gotas d’água começaram pouco a pouco a bater no vidro. Um minuto depois, um temporal caiu sobre o Rio de Janeiro. A cada pessoa que aparecia na porta, ele quase tinha um infarto esperando que fosse ela. A aula começou e só havia quatro alunos na sala. Após 10 minutos de aula surgiu na porta o gordinho. Mesmo ela não tendo vindo naquele dia, um prazer ele teve: o de colocar o gordinho para dançar com a dona Ive, a senhora de 86 anos que havia vindo justamente naquele dia, após um mês afastada da dança de salão.

Ele viveu noites de tormenta lembrando daquele sorriso cheio de esplendor, dos olhos azuis à Finlândia, das pernas que iam e voltavam no balanço do bolero... No sábado a noite, o professor foi à Lapa. Talvez ela tivesse decidido pôr os poucos passos que aprendeu em prática naquele fim de semana. Destemido, ele foi ao Democráticos, ao Lapa 40 graus e a três bares na mesma noite. Encontrou muitos conhecidos, mas, é claro, nenhum deles era ela.

Terça-feira, 19:45: momento de tensão. Novamente faltava 15 minutos para o começo da aula, a previsão do tempo não mencionava chuva e na sala já havia sete alunos. Quando o seu relógio da Casio marcava exatamente 19:58, ela apareceu na porta com uma saia rosa e uma camiseta branca. Que primor! Pela respiração ofegante, ela correu para chegar na hora. Ele perguntou porque havia faltado à última aula e ela disse que se surpreendeu por ele ter notado sua ausência, deu um sorriso tão lindo quanto o da semana anterior e explicou que, com a chuva, preferiu ir para casa, já que a rua Jardim Botânico, seu caminho, alaga facilmente.

A aula daquele dia foi divina. Eles dançaram juntos e enquanto dançavam conversaram. Ela claramente havia aprendido alguns passos. Ao final da aula ele perguntou como ela havia melhorado tanto em tão pouco tempo e ela respondeu que havia ido à Gafieira Elite, ali perto da Lapa, no sábado a noite.

Ao fim da aula de quinta-feira, ele a convidou para ir a um baile no dia seguinte. Ela aceitou e, de quinta para sexta, a ansiedade não o deixou dormir mais que três horas. Nesse pouco tempo de sono ele sonhou que a beijava no meio do salão e que ela o olhava apaixonada enquanto ele passava a mão por seu cabelo loiro, num carinhoso movimento que tirava o cabelo da frente de parte do rosto para que ele pudesse ver melhor aquelas feições de beleza incomparável. Passou a sexta-feira inteira pensando em como seria encontrá-la, planejando os passos que ensinaria a ela, a conversa que eles teriam, cada momento propício para beijá-la etc.

Eles se encontraram na Cinelândia às 21h. Ele estava sentado em um dos bancos esperando por ela quando a viu emergir da saída do metrô, divina, em um vestido amarelo que delineava seu corpo melhor do que qualquer outra roupa que ele já havia visto ela vestir. Além disso, maquiada ela conseguia ficar ainda mais bonita. Era inconcebível que Deus houvesse criado algo tão belo quanto aquela mulher. Enquanto ela caminhava em sua direção, ele lembrou que estava loucamente apaixonado por uma mulher que mal conhecia. Isso também era inconcebível, mas ao mesmo tempo era impossível de controlar. Ele queria mais do que nunca agarrá-la, tocar seu corpo livremente, dizer coisas que nunca sentiu-se a vontade para dizer a qualquer mulher. Trocaram beijos no rosto e ele ficou inebriado com o perfume. A conclusão é de que ela era perfeita, nada menos que perfeita.

Logo que começaram a andar, ela pediu licença ao seu professor e tomou a frente na caminhada, rumando para o cinema Odeon, onde havia uma pessoa parada. A princípio, ele não entendeu, mas logo foi tomado pelo pavor da surpresa. Na frente do Odeon estava o gordinho da academia de dança, que a recebeu com um beijo na boca e um abraço apertado, que denotava a paixão entre o casal.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Best-seller

Para ele felicidade era intermitente. Olhando para trás, o jornalista de 68 anos conseguia ver claramente os períodos em que foi feliz e aqueles em que não foi. Conseguia, inclusive, enxergar os pontos determinantes para que um período se encerrasse e outro tivesse início. Naquele momento, ele se sentia infeliz. Desde o divórcio com a terceira esposa, dois anos antes, ele não se relacionava com ninguém. Morava sozinho - seu labrador havia morrido recentemente. Lamentava diariamente a idade avançada e as dores nas articulações e durante muitas noites ele não dormia dominado pela nostalgia de tempos áureos. Era fato que ele trilhou uma carreira brilhante. Começou como repórter de política e economia em um jornal carioca. Depois, migrou para uma revista paulista. Como correspondente internacional dessa mesma revista, ele cobriu posses presidenciais e renúncias, quebra de grandes empresas durante a crise econômica, manifestações envolvendo milhões de pessoas, atentados terroristas, casamentos da realeza britânica, porres de artistas pop, festivais de cinema, campeonatos de futebol, vôlei, tênis e rúgbi, corridas de fórmula 1, terremotos, acidentes de avião, de carro, de barco e de bicicleta (sim, um dia ele fez uma matéria sobre os acidentes de bicicleta na China, afinal, lá esse veículo é bastante usado) etc. De volta ao Brasil, ele foi chefe de redação da mesma revista, conseguindo torná-la em uma das três mais vendidas no país. A medalha de bronze não lhe bastava. Virou colunista e editor executivo do jornal mais vendido do país, aquele em que ele havia sido repórter no início da carreira. Esse trabalho o já careca jornalista abandonou por ideologia (ou não): foi ser ministro da secretaria de comunicação. Curiosamente, o presidente era seu amigo dos tempos de faculdade. Após outras experiências como político, ele lançou um blog vinculado a um portal de internet muito bem acessado e virou comentarista de política internacional em um telejornal. Ao longo de sua vida, no entanto, houve fracassos. Seus romances nunca venderam muito. Desde a primeira viagem como repórter especial, ainda no jornal, ele escrevia histórias fictícias. Já eram quatro livros publicados sem muito sucesso quando ele decidiu escrever uma auto-biografia.

Para que sua biografia se tornasse um best-seller, ele precisaria incluir algo mais do que questões que só interessariam estudantes de jornalismo ávidos por modelos a serem seguidos. Ele decidiu explicitar no seu livro esses períodos de felicidade e de melancolia. Ele começou o livro com os momentos mais marcantes em sua memória, mas evitando polêmicas. Fez questão também de evitar coisas comuns, como dia do casamento ou nascimento dos filhos. Falou sobre o incômodo de ter ereções após uma cirurgia de fimose aos 14 anos. Ele contou sobre a viagem que fez escondido com uma namorada na adolescência. Acamparam em uma praia no Espírito Santo e passaram o Reveillon transando. Contou sobre os dois dias que ficou bebendo sem parar depois que sua mulher o deixou revelando que estava apaixonada por um rapaz 15 anos mais novo que ela. Também descreveu como foi, alguns meses depois de ser deixado, descobrir que seu filho de 17 anos também era apaixonado por um rapaz, mas esse da mesma idade. No campo profissional, lembrou de sua demissão no primeiro estágio por ter assediado a sobrinha do editor de economia. Lembrou também a ocasião em que deu um soco em um repórter italiano ao fim de uma coletiva de imprensa do primeiro ministro alemão. Entre muitas outras peripécias.

No final das contas, o bem-sucedido blogueiro e comentarista da TV, lançou um livro muito pessoal. Não havia grandes revelações, mas havia nele o que o jornalista julgava ser o mais curioso de sua vida. Foram 378 cópias vendidas em três meses, quando a editora decidiu parar de rodar exemplares. Sua filha dizia que tinha mais amigos no facebook que o pai dela tinha leitores. Ter um livro que fosse muito vendido era o grande desafio para aquele homem naquele momento de sua vida. Determinado a tornar sua auto-biografia em um best seller a qualquer custo, ele voltou ao computador para redigir novos capítulos, bombásticos. Esses capítulos continham nomes de políticos ainda em atividade atrelados a esquemas de corrupção e explicavam o real motivo para ter renunciado ao cargo de ministro. Também estava nessas novas páginas a revelação da forma de trabalhar antiética de alguns de seus colegas no jornal para conseguir furos de reportagem. O leitor também teria acesso a algumas histórias de sua vida pessoal que teriam muito mais impacto do que as lançadas na primeira edição da auto-biografia, como o caso de amor que teve com a esposa de um outro jornalista. O livro certamente venderia muito mais com as revelações, mas ele não sabia como lidar com as implicações de jogar a bosta no ventilador.

No dia em que foi à emissora de TV fazer seus comentários de política internacional no telejornal vespertino, trancou-se no camarim com uma cópia da nova edição do livro, uma pequena carta redigida a mão e uma pistola calibre 22. Sentou-se na poltrona ao lado da porta do banheiro e atirou no peito, morrendo instanteamente. A carta de despedida acabou publicada no seu blog como o último post. Lá ele explicava como sua vida havia sido gloriosa e incompatível com o marasmo que vivia antes do suicídio. Também deixava claro que não poderia continuar vivendo após as revelações que a nova edição de seu livro traria. Seu blog teve mais de 150 mil acessos em um dia. No dia seguinte, a capa do jornal estampava a última frase da carta que virou post: “Deixo a vida para entrar na lista de livros mais vendidos.”

domingo, 14 de novembro de 2010

Não vá para Pasárgada, Bandeira!

Como eu sei que Manuel Bandeira estava muito triste quando escreveu seu poema “Vou-me Embora pra Pasárgada”, decidi enviar-lhe alguns conselhos:

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei


Mulher, é claro! Tinha que ser mulher. A primeira coisa que passou pela sua cabeça para escrever esse poema foi mulher. Mas eu te entendo, caro Bandeira. Você é dos meus. É um daqueles que acha que é impossível ser feliz sozinho, mas que não acha a mulher certa nem fodendo. Foder faz parte do metiê, é verdade, mas enfim...

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive


“Aqui não sou mais feliz” é um verso contundente. Veja você que se a primeira coisa que lhe faz querer ir para Pasárgada é mulher e a segunda é que você não é mais feliz aqui (seja lá onde for “aqui”), conclui-se rapidamente que para ser feliz você julga precisar de uma mulher. E o pior é que você tinha a maior fama de pegador. Mas cuidado, Bandeira, não dê tanta moral a elas. Elas podem ser perigosas. Aí você vem com esse papo de que “Lá a existência é uma aventura”. Se vivesse no Rio de Janeiro de hoje em dia certamente não teria a ousadia de escrever isso. Convenhamos, há cidade com mais aventuras que o Rio de Janeiro? Aqui temos um trem que vira e mexe sai por aí desgovernado fazendo as pessoas se jogarem na estação. Temos pivetes que correm atrás de você em plena Avenida Rio Branco. Temos jovenzinhos fazendo pega na Zona Sul. Flanelinhas que arranham seu carro se você não pagar 20 reais para estacionar. Ahh, Bandeira, francamente. E ainda completa dizendo “De tal modo inconsequente.” O fim dessa estrofe é incompreensível. Como diria o poeta (outro poeta): O que tem o cu a ver com as calças?

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada


Cara, tem tudo isso no Rio, não precisa ir para Pasárgada! Tem um monte de academias aqui e tem agora aquelas estações onde você pode alugar bicicletas, se essa é a preocupação. Lá pras bandas de Santa Cruz deve ter burro para você montar e, porque mora em Santa Cruz, ele já deve ser brabo. Pau-de-sebo tem na feira de São Cristóvão em época de Festa Junina. Banho de mar tem no Rio a dar com pau, e rio tem um monte também: Rio Maracanã, Rio Pavuna, Rio Sarapuí... Só beleza! E pagando, você arruma uma mãe d’água que te conta a história que você quiser.

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar


Eu sei que foi depois que você morreu, mas hoje temos uma coisa chamada pílula contraceptiva. Uma beleza, viu? Mas que diabos é um telefone automático? Quanto ao outro problema, já ouviu falar em Termas Aeroporto? Fica ali na Glória, muito famoso e você encontra essas coisas aí dos últimos parágrafos.

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei


Vou-me embora pra Pasárgada.

Não fica assim, não, meu camarada. Isso passa! E não adianta ir para outro lugar, você sempre será a mesma pessoa. Acho que você está é precisando fazer análise.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Turbilhão de Sentimentos

Um turbilhão de sentimentos. Apesar de clichê, a metáfora não é nada menos que apropriada para descrever o que ele sentia quando bateu a porta de casa, preparou a voz e xingou um palavrão dos mais escabrosos, daqueles que faz os velhos que moram ao lado – afinal, é Copacabana – resmungarem por semanas. No elevador, o vizinho do vigésimo andar olhou espantado para aquele homem furioso, que parecia pronto para esganar o primeiro que lhe oferecesse oposição em qualquer assunto. A porta do elevador abriu e ele saiu como se marchasse. Tolice. Aquele ainda era o terceiro andar. A culpa, obviamente, era dela. Depois de tê-lo irritado tanto, agora ele se via obrigado a esperar pelo próximo elevador – o vizinho, assustado, apertou o botão que fecha as portas antes que o mal elemento pudesse voltar atrás – ou a descer de escadas. Preferiu a segunda opção. No térreo, ao abrir a porta das escadas, não respondeu o simpático “boa tarde” que o porteiro cearense lhe estimou. O que tinha de simpático, esse porteiro tinha de vingativo. Se seu “boa tarde” não obteve resposta ele tampouco seria solicito ao ponto de apressar o passo ao sair do jardim para abrir o portão. Regou mais umas duas plantinhas antes de caminhar lentamente para fazer aquele que é trabalho inerente à sua profissão: apertar o interruptor na portaria.

Rua Miguel Lemos, quase esquina com Nossa Senhora de Copacabana. Dali saiu, ali parou. Só agora o pobre homem atormentado pelas desavenças geradas pelo amor se deu conta de que batera a porta de casa e de lá saíra sem rumo. Claro, claro. Ele precisava de uma boa caminhada para amadurecer a decisão drástica que anunciaria àquela vagabunda quando voltasse ao apartamento. Começou a andar rumo à praia.

Finalmente no calçadão da Av. Atlântica. Agora poderia colocar seus pensamentos em ordem. Muito bem, uma coisa era certa, aquele era o momento da separação. Como é possível um homem continuar vivendo com uma mulher após ser tão humilhado? Ela havia lançado qualificações vis sobre ele. Foi de egoísta, paranoico e hipócrita para baixo. E quando toda essa discussão havia começado, ele é quem detinha o poder da crítica, afinal, ele começara reclamando da forma agressiva como ela falava em certos momentos. Ao olhar para a sua esquerda ele notou que já havia andado quase dois quarteirões, acabara de passar a Xavier da Silveira e estava há menos de 30 metros da Bolívar.

Quando passou da Rua Bolívar lembrou que além de tudo ela havia se atrasado em quase 2 horas na noite anterior e ele ficou todo esse tempo como um paspalho sozinho na mesa. Onde já se viu? Todos os outros casais felizes trocando beijos e sorrisos nas mesas vizinhas – afinal, o gramado do vizinho sempre é mais verde – e ele ali, só, esperando por ela. E quando ela chegou, ele foi absolutamente carinhoso, apesar de não ter dado muitos sorrisos. Ela nem pediu desculpas mais de uma vez e no dia seguinte ainda foi grosseira. Chegou à Barão de Ipanema.

“Por que grosseira?”, ele se perguntou. Mas isso é evidente. Ela levantou da cama sem lhe oferecer qualquer carinho. Onde está o romantismo, ora bolas? Naquela semana eles completaram 2 anos juntos. Antigamente ela preparava o café da manhã para eles no sábado. Quando ele levantou ela já havia tomado café da manhã e assistia TV na sala. Por que não no quarto com ele? É, tudo indicava para o fim daquele relacionamento. Constante Ramos.

Ele foi reclamar, obviamente. Precisava dizer tudo que lhe incomodava. Ela respondeu com agressividade, não teve compaixão, não entendeu o seu incômodo. Vaca! Como pôde conviver com ela por tanto tempo. Não, não poderia de forma alguma aceitar aquele desamor. As ideias estavam límpidas em sua mente. Ele voltaria e diria que não quer mais morar com ela. Certamente conseguiria uma vaguinha na casa de seus pais no Méier. Agora que passava pela Rua Santa Clara decidira andar apenas mais um quarteirão, só até a Figueiredo Magalhães. De lá ele voltaria para fazer o anúncio fatídico.

Ele já se sentia mais calmo, a decisão que tomasse não seria mais no calor do momento. Já nem tinha mais raiva do porteiro, aquele paraíba sem-vergonha, preguiçoso, fofoqueiro... Toda a sua ira se voltara contra ela. Ele não sabia era como lidar com um pedido de desculpas. Imagine se ela pede desculpas, se decide não levar a discussão às últimas consequências. Ora, a Figueiredo Magalhães já estava chegando, mais uns 10 passos e ele teria que voltar, decidido a terminar tudo. Agora faltavam apenas mais uns 3 passos. E ele continuou. Passou direto da Figueiredo Magalhães. Iria andar pelo menos até a Siqueira Campos.

Mesmo com um pedido de desculpas, o orgulho daquele homem rijo continuaria ferido. Ele não poderia suportar olhar para aqueles lindos olhos castanhos que ela portava e não sentir raiva por ter deixado toda aquela discussão para trás. Afinal, ele é quem tinha razão. Ele tinha toda e qualquer razão que se é para ter nesse caso. Ele passou a Siqueira Campos e nem viu.

Quase chegando na Hilário de Gouveia ele começou a pensar na noite de sexta-feira. Talvez ela não tivesse chegado quase 2 horas atrasada. Se eles saíram de lá às 23:20, conforme o horário da ligação para o táxi denunciava no celular, e eles ficaram juntos no restaurante por cerca de 2 horas, ela chegou mais ou menos 1 hora e 20 minutos atrasada, já que ele mesmo chegou por volta de 20h. Tudo bem, 1 hora e 20 minutos ainda lhe parecia perdoável. Passou a Paula Freitas. Me refiro à rua, é bom deixar claro.

Que maldita dor de cabeça ele sentia quando chegou à Rua República do Peru. Já não aguentava mais pensar naquela discussão. Talvez fosse realmente melhor parar de se irritar com esse relacionamento e tentar a solteirice. Ora, já nem se lembrava como era a solteirice. Talvez fosse ainda pior. Olhou para o telefone e viu que não havia qualquer mensagem ou chamada não atendida. O que ela estava esperando? Ele chegar ao Leme? Pelo menos à Rua Fernando Mendes ele já havia chegado.

Deus, como ele já havia andado. Já estava quase chegando ao Copacabana Palace. Voltou a pensar nos insultos. Como lidar com adjetivos tão pouco amigáveis como aqueles que ela usou. Ele não poderia ignorar, aí estaria confirmando o estigma de hipócrita. Sinuca de bico. Essa era a situação em que se encontrava. Se ele aceitasse o pedido de desculpas dela, ele estaria ignorando seus valores mais intrínsecos. Como lidar com isso? Passou a Rodolfo Dantas.

Lembrou de quando se conheceram, em um dia chuvoso no Centro. Ele foi tão romântico ao ceder o guarda-chuva a ela quando saíram do elevador e ela comentou com uma amiga que não poderia se molhar, já que havia feito o cabelo naquele mesmo dia. Trabalhavam no mesmo prédio, ele advogado, ela publicitária. Como ele poderia deixar aquela mulher maravilhosa, se perguntou na esquina da Atlântica com a Rua Duvivier.

Ela insistia em não ligar. Talvez ela tivesse decidido pôr fim ao relacionamento. Ora, ele fora tão estúpido com suas reclamações. Como ele pôde reclamar de agressividade se havia sido muito mais agressivo com ela em seguida? E ainda por cima os motivos eram tão pequenos. Quando chegou à Rua Belfort Roxo sentiu um tremendo calafrio.

Já era. Se ele chegasse ao Leme sem que ela tentasse estabelecer contato, tudo estaria acabado e ele não teria mais qualquer chance. Nem através de flores, ou outdoors com frases que só ele e ela entenderiam, ou ainda cartas de amor, carros de som, ou seja lá o que for. Quando chegou à Prado Júnior ele sentiu medo, mas lembrou que Prado Júnior não é Leme, apesar de alguns espartalhões tentarem valorizar seus imóveis nos classificados dizendo que seus apartamentos naquela rua se localizam em um bairro melhor.

O que fazer? A esquina com a Princesa Isabel, que dividia Copacabana e Leme, se aproximava como um trem. Para piorar tudo, começou a chover. E ele nem guarda-chuva tinha. Por mais clichê que possa parecer, as gotas de chuva se misturaram às lágrimas sinceras de um homem que agora se sentia profundamente só. Foi quando o telefone vibrou. Era ela. Acalmou-se. Esperou tocar por alguns segundos antes de atendê-la. “Alô”, disse sua imprescindível namorada. E ele respondeu, sem delongas, “Sim, eu te perdoo! Agora, pega o carro e vem aqui me buscar porque está chovendo a beça!”

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Uma noite de terça-feira

Mais um dia estressante no escritório terminava com o fechar das portas do elevador no qual ele estava, sozinho, pronto para descer vinte andares. O seu relógio Mont Blanc marcava 21 horas e 43 minutos. Era um Mont Blanc com pulseiras de couro marrom e mostrador prateado, de fundo branco. Ele só desgostava duas coisas no relógio: os números romanos e o fato de não ser original. Era terça-feira, um dia como outro qualquer. Nem jogo na TV tinha na terça-feira. Suas perspectivas para aquele resto de dia eram as mais terrivelmente rotineiras. Pode parecer exagero, mas o que mais incomodava aquele homem trabalhador, além de não ter dinheiro para comprar um Mont Blanc original, era o quão pacata, repetitiva e desanimadora a sua vida era.
Na porta do prédio ele praguejou contra a chuva que insistia em cair pelo terceiro dia consecutivo. Ele não ouviu, mas o porteiro também praguejou contra ele por ser sempre o último a sair do edifício. Deu um largo passo a frente, pulando uma poça d’água, e abriu seu guarda-chuva. Ele reclamava da chuva mais por ser uma característica intrinsecamente sua essa de reclamar de tudo em dias de mau humor como aquele que se encerrava. No fundo, ele preferia dias de chuva a dias ensolarados. Achava a cidade mais charmosa sob o efeito da garoa. Ele também se achava mais charmoso com aquele guarda-chuva com cabo de madeira nas mãos.

A passos firmes e longos ele caminhava pela principal rua do centro comercial. As lojas já estavam fechadas e aquela rua tão movimentada à luz do dia abrigava agora poucos transeuntes e os pobres coitados que nela dormiriam. O pragmatismo de seu andar não refletia seus pensamentos. Em meio à sua luta diária para acalmar-se e entender que nem todos os dias de nossas vidas precisam ser inesquecíveis, ele não perdia a esperança de que naquela terça-feira a sua vida mudaria. Naturalmente, no dia anterior, ele também havia tido esperança de que tudo mudaria, mesmo sendo segunda-feira um dia do qual não se espera muita coisa em termos de vida pessoal. O que preenchia a cabeça daquele jovem rapaz toda vez que saía do escritório e expelia de sua mente assuntos profissionais era um turbilhão de ideias sobre o que ele poderia fazer para tornar a sua vida menos pacata. Após menos de 5 minutos de caminhada ele avistou a entrada da estação de metrô com a qual já estava tão habituado. Descer aquelas escadas significaria, em termos práticos, que seu dia estaria sendo sepultado. Após 15 minutos desceria em São Cristóvão e caminharia por mais 10 minutos até a sua residência, sempre cauteloso, afinal, já era tarde e seu bairro não era tão seguro quanto gostaria que fosse. Ao chegar a seu prédio subiria até o quarto andar em um elevador cujo espelho estava rachado. Na porta de casa ele iria lembrar de pegar a chave no bolso direito da calça. Abriria a porta com sua tradicional impaciência, acenderia a luz, jogaria o paletó sobre a poltrona, tiraria a gravata e também a jogaria sobre a poltrona, mas ela provavelmente escorregaria até o chão. No meio da cozinha americana ele pararia para pensar em que comer e chegaria a sanduíche como conclusão. Comeria sentado na frente da TV. Tomaria um banho frio após o sagrado ritual de alimentação e deitaria para ver mais TV, deixando-se levar pelo sono logo em seguida. Quando acordasse de madrugada e notasse que a televisão ainda estava acesa já seria outro dia.

Como essa história acabaria aqui se o triste indivíduo descesse as escadas do metrô e fosse embora, ele desviou da entrada e seguiu na calçada da larga avenida rumo a sabe lá Deus onde. Por 30 segundos ele pensou em dar meia volta e ir embora. Talvez parecesse meio idiota se o fizesse, então continuou altivo e decidido em sua caminhada. Provavelmente essa era a primeira vez que sua preocupação com o que os outros pensam dele poderia funcionar a seu favor. Andou por mais 250 metros e virou à direita. Parou na esquina revelando sua dúvida. A rua, apesar de movimentada durante o dia, não era muito bem iluminada. Entre a calçada e os paralelepípedos da via, poças intermitentes. Sob as marquises alguns moradores de rua já repousavam. Do lado oposto passou um homem de terno correndo, o que não é exatamente estranho visto que chovia e ele não tinha um guarda-chuva. Em meio a isso havia um estabelecimento cujas luzes azuis do letreiro chamavam a atenção. Para nosso ilustre personagem, aquele lugar não era estranho. Também não era tão familiar. Sabia que já havia estado ali, mas provavelmente saiu de lá bêbado. Isso, é claro, comprometia a riqueza de detalhes de suas memórias.

Parou em frente à porta de madeira. Havia nela um pequeno quadrado de vidro. Encaixou seu rosto ali para ver se realmente reconhecia o bar. Gostou do que viu e decidiu entrar. Do seu lado direito havia algumas mesas redondas com tampo de vidro e base de ferro pintado de preto. Menos da metade dessas mesas estavam ocupadas. A parte do bar que abrigava as mesas logo acabava, revelando o balcão de drinques. Algumas cadeiras mais altas, aparentemente de ferro também, espalhavam-se em frente ao balcão longamente retangular. Nada mais tradicional. Ele caminhou lentamente, agora com o paletó sobre o ombro, rumo a uma dessas cadeiras próximas ao balcão. Assim que sentou foi atendido por um sujeito cuja longa barba grisalha criava certa repulsa. Pediu um dry martini. Apoiou as mãos sobre a mesa, uma entrelaçada na outra. Suspirou. Decidiu olhar em volta observando agora as pessoas presentes no recinto. À sua direita havia um homem bem branco de cabelos negros e curtos e que vestia uma camisa pólo cinza. Ele também aparentava estar sozinho. Pensativo, o desconhecido punha açúcar no que parecia ser uma caipirinha. Na pior das hipóteses eles poderiam conversar e de toda essa estratégia para salvar sua terça a noite sairia um bom amigo. Saldo positivo. Virou-se para a esquerda. No meio do caminho notou que seu drinque já lhe aguardava no balcão. O homem barbado foi ágil e silencioso. À esquerda havia duas mulheres que conversavam freneticamente. A que estava mais distante estava virada na direção dele. Ela tinha longos cabelos cacheados e aparentava ter no máximo 25 ou 26 anos, mas não menos que 21. O decote de seu blazer lilás revelava seios nem muito grandes nem muito pequenos. Simplesmente ideais. A outra mulher não lhe chamava a atenção. Estava de costas e não parecia tão interessante quanto a morena de cachos negros.

Enquanto bebia seu drinque ele olhava a morena com olhos compenetrados, tentando fazê-la olhar para ele pela força da mente. Em sua inocência ele pensava que essa estratégia sempre funcionava e que ele era realmente especial, mas a verdade é que quando há um idiota lhe encarando é inevitável olhá-lo também. Como esperado, em determinado momento os olhares deles se cruzaram. Ela falou algo no ouvido da moça que a acompanhava e sorriu um sorriso tímido, com o rabo do olho voltado para nosso ilustre rapaz. Esse olhar o seduziu e o fez concluir que ali havia uma brecha. Uma cadeira o separava das duas moças. Ponderou mover para a cadeira da esquerda. Apesar de concluir que ainda haveria a mulher que estava de costas entre eles, suspeitou que a jogada pudesse iniciar uma conversa. Com a mesma rapidez do velho barbudo ele puxou o martini para o lado e pulou para a outra cadeira. Ao sentar, sentiu que as duas pernas da frente do banco descolaram-se do chão anunciando uma queda. Falou um palavrão baixinho e se segurou no balcão. O palavrão, no entanto, foi ouvido pela mulher que estava de costas. Ela virou-se para ele com um olhar que não era de reprovação, mas nem de compreensão. Então ela voltou a seu papo. Ponto negativo. Aquela noite seria marcada, em seu íntimo, como uma noite de atitudes incomuns às suas características. Decidiu levantar, parar do lado da morena e puxar papo. Decidiu ignorar o que as moças poderiam pensar em caso de fracasso. Ele queria tanto meter a mão naqueles cachos e puxá-los com força, abrir aquele blazer com a voracidade da luxúria (mencionei que ela tinha uma aliança na mão esquerda?), falar palavras chulas no ouvido dela... Ela merecia, aquele sorriso constante e lindo o incomodava. Ele precisava daquela mulher. Melhor, ele pensava que precisava daquela mulher. Na verdade, ele precisava de uma mulher qualquer, considerados determinados padrões. Pobre homem.

Foram movimentos coincidentes. Enquanto ele levantava com seu dry martini na mão, olhando para o chão, as duas mulheres se aproximavam, inclinando os corpos para a frente. Quando virou o rosto novamente em direção às mulheres, os lábios daquelas mulheres se tocaram e elas trocaram um beijo avassalador. Ele pausou um pouco. Enquanto olhava partes das línguas das duas aparecer como resultado de um beijo cheio de tesão, ele simplesmente não conseguia articular um pensamento sobre o que fazer. Quando o beijo acabou estava ele ali, parado, em pé, como um guarda inglês. Logo se deu conta da mancada e rumou para o banheiro. Ao partir observou que o dedo anelar da mão esquerda da moça de costas tinha um adereço idêntico à aliança que a morena infelizmente usava. Ao entrar no banheiro o homem fechou a porta atrás de si e esbravejou outro palavrão, aquele que envolve alguém que dá a luz, mas não só a luz como também... enfim.

Quando voltou, após ter lavado o rosto no banheiro, as mulheres estavam saindo do bar. Ele teve a impressão de que a morena olhou para ele e deu uma piscadela antes de fechar a porta de madeira. Preferiu concluir que aquilo era um devaneio. O jeito era puxar papo com o camarada que estava lá, igualmente sozinho. Pensou no futebol. No dia seguinte ia ter Fla Flu no Maracanã. Era um bom pretexto, mas ele poderia ignorar futebol. Pensou em comentar as lésbicas. Mas isso pareceria preconceituoso, o que não era o caso. O que tinha lhe atormentado na situação fora o susto que teve. Chuva? Nada mais idiota, para ser sincero. Virou para o sujeito e disse um curto “E aí?”. A resposta foi igualmente curta: “Oi”. Mas esse cumprimento representava algo. Serve de bom exemplo sobre como a forma às vezes vale mais do que o conteúdo. O “oi” do rapaz era aveludado. Aveludado demais. Vinha acompanhado de um sorriso malicioso. A voz era fina como a de uma criança. O novo amigo desceu do banco e com sua caipirinha nas mãos começou a mover-se em direção àquele que havia puxado o papo que, vendo a cena, decidiu dar fim ao drinque e levantar-se para partir. Fez isso sem muito alarde. Deu tempo de dizer “Desculpe, preciso mesmo ir” com um sorriso sem jeito. Pagou o drinque deixando uma gorjeta considerável e abriu a porta rapidamente, saindo do bar.

A ideia de ir àquele bar naquela noite mostrou-se infeliz. Saiu de lá tão mal quanto entrou. Pensou que pegaria o metrô e, como de praxe, após 15 minutos desceria em São Cristóvão e caminharia por mais 10 minutos até a sua residência. Sempre cauteloso, aliás. Enfim, não queria aquilo para a sua terça-feira, mas já não podia esperar muito mais dela. Então decidiu que naquela noite iria para casa de táxi, só para variar um pouco.