Mais um dia estressante no escritório terminava com o fechar das portas do elevador no qual ele estava, sozinho, pronto para descer vinte andares. O seu relógio Mont Blanc marcava 21 horas e 43 minutos. Era um Mont Blanc com pulseiras de couro marrom e mostrador prateado, de fundo branco. Ele só desgostava duas coisas no relógio: os números romanos e o fato de não ser original. Era terça-feira, um dia como outro qualquer. Nem jogo na TV tinha na terça-feira. Suas perspectivas para aquele resto de dia eram as mais terrivelmente rotineiras. Pode parecer exagero, mas o que mais incomodava aquele homem trabalhador, além de não ter dinheiro para comprar um Mont Blanc original, era o quão pacata, repetitiva e desanimadora a sua vida era.
Na porta do prédio ele praguejou contra a chuva que insistia em cair pelo terceiro dia consecutivo. Ele não ouviu, mas o porteiro também praguejou contra ele por ser sempre o último a sair do edifício. Deu um largo passo a frente, pulando uma poça d’água, e abriu seu guarda-chuva. Ele reclamava da chuva mais por ser uma característica intrinsecamente sua essa de reclamar de tudo em dias de mau humor como aquele que se encerrava. No fundo, ele preferia dias de chuva a dias ensolarados. Achava a cidade mais charmosa sob o efeito da garoa. Ele também se achava mais charmoso com aquele guarda-chuva com cabo de madeira nas mãos.
A passos firmes e longos ele caminhava pela principal rua do centro comercial. As lojas já estavam fechadas e aquela rua tão movimentada à luz do dia abrigava agora poucos transeuntes e os pobres coitados que nela dormiriam. O pragmatismo de seu andar não refletia seus pensamentos. Em meio à sua luta diária para acalmar-se e entender que nem todos os dias de nossas vidas precisam ser inesquecíveis, ele não perdia a esperança de que naquela terça-feira a sua vida mudaria. Naturalmente, no dia anterior, ele também havia tido esperança de que tudo mudaria, mesmo sendo segunda-feira um dia do qual não se espera muita coisa em termos de vida pessoal. O que preenchia a cabeça daquele jovem rapaz toda vez que saía do escritório e expelia de sua mente assuntos profissionais era um turbilhão de ideias sobre o que ele poderia fazer para tornar a sua vida menos pacata. Após menos de 5 minutos de caminhada ele avistou a entrada da estação de metrô com a qual já estava tão habituado. Descer aquelas escadas significaria, em termos práticos, que seu dia estaria sendo sepultado. Após 15 minutos desceria em São Cristóvão e caminharia por mais 10 minutos até a sua residência, sempre cauteloso, afinal, já era tarde e seu bairro não era tão seguro quanto gostaria que fosse. Ao chegar a seu prédio subiria até o quarto andar em um elevador cujo espelho estava rachado. Na porta de casa ele iria lembrar de pegar a chave no bolso direito da calça. Abriria a porta com sua tradicional impaciência, acenderia a luz, jogaria o paletó sobre a poltrona, tiraria a gravata e também a jogaria sobre a poltrona, mas ela provavelmente escorregaria até o chão. No meio da cozinha americana ele pararia para pensar em que comer e chegaria a sanduíche como conclusão. Comeria sentado na frente da TV. Tomaria um banho frio após o sagrado ritual de alimentação e deitaria para ver mais TV, deixando-se levar pelo sono logo em seguida. Quando acordasse de madrugada e notasse que a televisão ainda estava acesa já seria outro dia.
Como essa história acabaria aqui se o triste indivíduo descesse as escadas do metrô e fosse embora, ele desviou da entrada e seguiu na calçada da larga avenida rumo a sabe lá Deus onde. Por 30 segundos ele pensou em dar meia volta e ir embora. Talvez parecesse meio idiota se o fizesse, então continuou altivo e decidido em sua caminhada. Provavelmente essa era a primeira vez que sua preocupação com o que os outros pensam dele poderia funcionar a seu favor. Andou por mais 250 metros e virou à direita. Parou na esquina revelando sua dúvida. A rua, apesar de movimentada durante o dia, não era muito bem iluminada. Entre a calçada e os paralelepípedos da via, poças intermitentes. Sob as marquises alguns moradores de rua já repousavam. Do lado oposto passou um homem de terno correndo, o que não é exatamente estranho visto que chovia e ele não tinha um guarda-chuva. Em meio a isso havia um estabelecimento cujas luzes azuis do letreiro chamavam a atenção. Para nosso ilustre personagem, aquele lugar não era estranho. Também não era tão familiar. Sabia que já havia estado ali, mas provavelmente saiu de lá bêbado. Isso, é claro, comprometia a riqueza de detalhes de suas memórias.
Parou em frente à porta de madeira. Havia nela um pequeno quadrado de vidro. Encaixou seu rosto ali para ver se realmente reconhecia o bar. Gostou do que viu e decidiu entrar. Do seu lado direito havia algumas mesas redondas com tampo de vidro e base de ferro pintado de preto. Menos da metade dessas mesas estavam ocupadas. A parte do bar que abrigava as mesas logo acabava, revelando o balcão de drinques. Algumas cadeiras mais altas, aparentemente de ferro também, espalhavam-se em frente ao balcão longamente retangular. Nada mais tradicional. Ele caminhou lentamente, agora com o paletó sobre o ombro, rumo a uma dessas cadeiras próximas ao balcão. Assim que sentou foi atendido por um sujeito cuja longa barba grisalha criava certa repulsa. Pediu um dry martini. Apoiou as mãos sobre a mesa, uma entrelaçada na outra. Suspirou. Decidiu olhar em volta observando agora as pessoas presentes no recinto. À sua direita havia um homem bem branco de cabelos negros e curtos e que vestia uma camisa pólo cinza. Ele também aparentava estar sozinho. Pensativo, o desconhecido punha açúcar no que parecia ser uma caipirinha. Na pior das hipóteses eles poderiam conversar e de toda essa estratégia para salvar sua terça a noite sairia um bom amigo. Saldo positivo. Virou-se para a esquerda. No meio do caminho notou que seu drinque já lhe aguardava no balcão. O homem barbado foi ágil e silencioso. À esquerda havia duas mulheres que conversavam freneticamente. A que estava mais distante estava virada na direção dele. Ela tinha longos cabelos cacheados e aparentava ter no máximo 25 ou 26 anos, mas não menos que 21. O decote de seu blazer lilás revelava seios nem muito grandes nem muito pequenos. Simplesmente ideais. A outra mulher não lhe chamava a atenção. Estava de costas e não parecia tão interessante quanto a morena de cachos negros.
Enquanto bebia seu drinque ele olhava a morena com olhos compenetrados, tentando fazê-la olhar para ele pela força da mente. Em sua inocência ele pensava que essa estratégia sempre funcionava e que ele era realmente especial, mas a verdade é que quando há um idiota lhe encarando é inevitável olhá-lo também. Como esperado, em determinado momento os olhares deles se cruzaram. Ela falou algo no ouvido da moça que a acompanhava e sorriu um sorriso tímido, com o rabo do olho voltado para nosso ilustre rapaz. Esse olhar o seduziu e o fez concluir que ali havia uma brecha. Uma cadeira o separava das duas moças. Ponderou mover para a cadeira da esquerda. Apesar de concluir que ainda haveria a mulher que estava de costas entre eles, suspeitou que a jogada pudesse iniciar uma conversa. Com a mesma rapidez do velho barbudo ele puxou o martini para o lado e pulou para a outra cadeira. Ao sentar, sentiu que as duas pernas da frente do banco descolaram-se do chão anunciando uma queda. Falou um palavrão baixinho e se segurou no balcão. O palavrão, no entanto, foi ouvido pela mulher que estava de costas. Ela virou-se para ele com um olhar que não era de reprovação, mas nem de compreensão. Então ela voltou a seu papo. Ponto negativo. Aquela noite seria marcada, em seu íntimo, como uma noite de atitudes incomuns às suas características. Decidiu levantar, parar do lado da morena e puxar papo. Decidiu ignorar o que as moças poderiam pensar em caso de fracasso. Ele queria tanto meter a mão naqueles cachos e puxá-los com força, abrir aquele blazer com a voracidade da luxúria (mencionei que ela tinha uma aliança na mão esquerda?), falar palavras chulas no ouvido dela... Ela merecia, aquele sorriso constante e lindo o incomodava. Ele precisava daquela mulher. Melhor, ele pensava que precisava daquela mulher. Na verdade, ele precisava de uma mulher qualquer, considerados determinados padrões. Pobre homem.
Foram movimentos coincidentes. Enquanto ele levantava com seu dry martini na mão, olhando para o chão, as duas mulheres se aproximavam, inclinando os corpos para a frente. Quando virou o rosto novamente em direção às mulheres, os lábios daquelas mulheres se tocaram e elas trocaram um beijo avassalador. Ele pausou um pouco. Enquanto olhava partes das línguas das duas aparecer como resultado de um beijo cheio de tesão, ele simplesmente não conseguia articular um pensamento sobre o que fazer. Quando o beijo acabou estava ele ali, parado, em pé, como um guarda inglês. Logo se deu conta da mancada e rumou para o banheiro. Ao partir observou que o dedo anelar da mão esquerda da moça de costas tinha um adereço idêntico à aliança que a morena infelizmente usava. Ao entrar no banheiro o homem fechou a porta atrás de si e esbravejou outro palavrão, aquele que envolve alguém que dá a luz, mas não só a luz como também... enfim.
Quando voltou, após ter lavado o rosto no banheiro, as mulheres estavam saindo do bar. Ele teve a impressão de que a morena olhou para ele e deu uma piscadela antes de fechar a porta de madeira. Preferiu concluir que aquilo era um devaneio. O jeito era puxar papo com o camarada que estava lá, igualmente sozinho. Pensou no futebol. No dia seguinte ia ter Fla Flu no Maracanã. Era um bom pretexto, mas ele poderia ignorar futebol. Pensou em comentar as lésbicas. Mas isso pareceria preconceituoso, o que não era o caso. O que tinha lhe atormentado na situação fora o susto que teve. Chuva? Nada mais idiota, para ser sincero. Virou para o sujeito e disse um curto “E aí?”. A resposta foi igualmente curta: “Oi”. Mas esse cumprimento representava algo. Serve de bom exemplo sobre como a forma às vezes vale mais do que o conteúdo. O “oi” do rapaz era aveludado. Aveludado demais. Vinha acompanhado de um sorriso malicioso. A voz era fina como a de uma criança. O novo amigo desceu do banco e com sua caipirinha nas mãos começou a mover-se em direção àquele que havia puxado o papo que, vendo a cena, decidiu dar fim ao drinque e levantar-se para partir. Fez isso sem muito alarde. Deu tempo de dizer “Desculpe, preciso mesmo ir” com um sorriso sem jeito. Pagou o drinque deixando uma gorjeta considerável e abriu a porta rapidamente, saindo do bar.
A ideia de ir àquele bar naquela noite mostrou-se infeliz. Saiu de lá tão mal quanto entrou. Pensou que pegaria o metrô e, como de praxe, após 15 minutos desceria em São Cristóvão e caminharia por mais 10 minutos até a sua residência. Sempre cauteloso, aliás. Enfim, não queria aquilo para a sua terça-feira, mas já não podia esperar muito mais dela. Então decidiu que naquela noite iria para casa de táxi, só para variar um pouco.
Daniel,
ResponderExcluirEsse cara é um LOSER!!!! hahahahahaha
Bjks e adorei os contos! Seu estilo não tem NADA a ver com o meu mas curti!
By the way... I've had much better Tuesday nights than this guy. ;)
ResponderExcluirRapaz...e eu reclamando das minhas terças feiras. Que vida angustiante do pobre Alfredo (sim, eu o chamo de Alfredo a partir de agora).
ResponderExcluirPior de tudo é que eu, involuntariamente, dei um suspiro meio decepcionado ao olhar pro meu pulso e não ver um Mont Real. =(
Adoreiii!! Ri demais nesta parte: "Em sua inocência ele pensava que essa estratégia sempre funcionava e que ele era realmente especial, mas a verdade é que quando há um idiota lhe encarando é inevitável olhá-lo também..." Muito bom mesmo.. beijos !
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