sexta-feira, 2 de abril de 2010

Olhos cândidos e o sorriso de Mona Lisa

Seu hobby era a fotografia. E muitas vezes extrapolava o limite do hobby entrando na categoria do vício. Mas havia uma peculiaridade sobre esse seu vício/hobby: ele só fotografava mulheres. Caetano Veloso provavelmente diria que isso é “heterossexual demais”, palavras que um dia usou para descrever Woody Allen. Mas, no fundo, fotografar mulheres para esse homem de meia idade era uma forma de expressar sua admiração pela complexidade do sexo feminino. Não havia nas suas fotos um compromisso em fotografar apenas as mulheres mais belas, mas de evidenciar a beleza das mulheres de um modo geral. De qualquer forma, ele manteve seu hábito de sair para fotografar damas na pequena cidade para a qual havia se mudado. Inclusive, restringir-se às mulheres locais lhe parecia, inicialmente, uma boa temática a ser seguida.

Quando terminou de se acomodar à nova casa, sentou-se na poltrona púrpura e puxou para si a sua Leica M3, de 1954, máquina fotográfica que herdou do pai, assim como o interesse por fotografia. A grande atenção a formas e expressões femininas também era herança do seu progenitor, um galanteador admirável. Quanto à Leica M3, ele a tratava com o carinho que tratava as próprias mulheres, tanto as que fotografava como as com quem se relacionava, havendo, inclusive, uma interseção entre esses grupos. Não tardou para que ele descesse a passos rápidos as escadas que separavam a porta principal do pequeno portão de ferro com sua raridade pendurada no ombro direito, dentro de uma pequena bolsa protetora. Vestia seus tradicionais suspensórios sobre uma camisa de botão bege. A calça era verde musgo. Um antigo chapéu-panamá e o par de sapatos marrom completavam o indumentário alternativo. É claro que em uma cidade com menos de dez mil habitantes, um homem vestido desta forma, com uma câmera tão antiga nas mãos, atrairia atenção. Logo, as fotos não pareceriam espontâneas. Isso o forçou a usar métodos que não gostava: pedia às mulheres que posassem para ele ao invés de tentar fotografá-las sem que notassem. E assim passou o dia abordando mulheres gentilmente, clicando e agradecendo.

Já era noite quando ele abriu a porta de casa e ligou o abajur. O modo como subira as escadas, em contraposição à disposição com a qual havia descido os mesmos degraus horas antes, prenunciava seu cansaço. Até mais do que cansado, ele parecia pouco entusiasmado com as fotos que logo revelaria em seu laboratório. Ele pensava que fotos posadas não renderiam bom material artístico. Pelo menos ele voltaria a revelar suas fotos com as próprias mãos, depois de tanto tempo em um apartamento onde não havia espaço para sua parafernalha. Aliás, quando trata-se de revelação do filme fotográfico, a sala totalmente sem luz, que a muitos causa pavor, lhe trazia tranquilidade e até nostalgia, relembrando assim o tempo em que aprendeu a revelar com o pai. Mas foi à luz vermelha que teve o maior prazer daquele dia. Ao observar as fotos que havia produzido parou em uma e ficou analisando-a fixamente, por minutos a fio. O que o impressionou foi uma linda mulher. Mais especificamente, o olhar e o sorriso de uma mulher.

Não conseguiu dormir. Em sua cabeça estavam os olhos verdes daquela mulher. Olhos de inocência e pureza. Ao mesmo tempo ele também não esquecia o seu sorriso paradoxalmente malicioso e enervante. Levantou da cama rendendo-se à tentação de ver a fotografia novamente. Tapou metade da foto e focou nos olhos da moça. Seu olhar revelava o quão indefesa ela era, revelava o quanto precisava de proteção, de amor, de carinho. Ao mesmo tempo, tapando-lhe os olhos, via um sorriso de deboche. Foi quando uma luz lhe agraciou a mente e o fez ver que aquele sorriso não se diferenciava em nada do mais famoso sorriso da história da arte: o de Mona Lisa.
Bobo de sua parte fazer uma comparação herege como aquela, afinal, o sorriso de Mona Lisa havia sido exaustivamente estudado e não seria uma mocinha provinciana que captaria a sua essência ao ponto de usá-lo assim, tão naturalmente. Ainda mais com olhos que tão claramente revelavam uma inocência que ninguém acreditava que Mona Lisa possuía. Como ela ousava tal despautério? Ele precisava conhecer aquela mulher imediatamente.

Nasceu o sol. Ele olhava-se no espelho enquanto pensava. Para ele era um costume encostar o ombro no vão da porta do banheiro e ver-se pensar através do espelho. Uma forma, talvez, de se enganar quanto à solidão que vivia desde o fim do seu terceiro matrimônio. O sono recusava-se a chegar. Suas olheiras demonstravam que o problema era rotineiro. Ele forçava a memória para lembrar quando e onde havia fotografado aquela mulher. Culpava-se por não ter notado todo o seu esplendor no momento em que a fotografou. Talvez fosse mesmo a hora de passar para as câmeras digitais. Pegou a foto, a pôs no bolso interno de sua jaqueta e decidiu rumar para o centro da cidade. Ainda era cedo quando ele sentou em um dos bancos da praça e começou a esperar ela passar. Ela não passou. Ele voltou pra casa sentindo-se um fracassado por ter perdido tanto tempo por conta de um maldito sorriso e um olhar. Mas no dia seguinte não resistiu e foi perambular pela cidade com o mesmo propósito. E ele fez isso por meses, intercalando horários e locais. Não compreendia como, em uma cidade tão pequena, ele não conseguia achar determinada pessoa após meses de busca. E assim como a dor da perda de um grande amor, sua ânsia de vê-la foi diminuindo, sua esperança de encontrá-la foi desbotando, a paixão por aquela mulher misteriosa foi perdendo espaço na sua vida e na sua mente, até que se tornou uma pequena lembrança que vinha lhe atormentar apenas esporadicamente.

Era uma ensolarada manhã dominical. Desceu as escadas lentamente, tomando os cuidados que a terceira idade exige. Empurrou o portão com a bengala que sempre lhe acompanhava, demonstrando uma certa rabugice. Fechou o portão sem trancá-lo e saiu em sua caminhada rumo à padaria. Antes de sentar-se para o café da manhã parou no jornaleiro. Lançou mãe de um seco “bom dia” para cumprimentá-lo, pegou o jornal e pagou, sem mais palavras. Na padaria, pediu um pão com manteiga e um copo de café e abriu seu jornal. Intercalava mordidas no pão gorduroso e goladas no café sem açúcar com matérias especiais do jornal de domingo. Até que, de repente, não mais que de repente, ele congelou com uma visão. Na mesa oposta à sua, viu olhos que conhecia bem, com o mesmo conteúdo cândido que tantas vezes lhe tirou não só o sono como a concentração. Seus olhos estavam azulados naquele momento, provavelmente por conta do sol, mas eram certamente os mesmos olhos pelos quais havia se apaixonado. As rugas que já consumiam levemente a pele do rosto dela não anulavam a sua beleza. Ela ainda era uma mulher atraente. Ele levantou-se abandonando café, pão e jornal e pediu licença para sentar-se com a misteriosa dama. Ela estranhou. Ele então puxou de dentro de sua caderneta, comum aos idosos, uma fotografia. Mostrou a ela e perguntou se reconhecia aquela pessoa. Claro que ela reconhecia. Eles conversaram por um tempo. Até que ele contou que a procurou. Ela disse que havia ido a São Paulo fazer negócios e ficou morando lá por um tempo. Ele perguntou sobre os negócios. Houve silêncio. Então ela sorriu o sorriso de Mona Lisa. Ele quase teve um infarte de tanta emoção. “Sou prostituta desde muito antes de você me fotografar”, ela confessou. Ela explicou que o mercado em São Paulo era melhor, mas que ela acabou voltando porque sentia falta da sua cidade local. Disse várias outras coisas, mas ele não ouvia. Estava extasiado com a notícia. Realmente, sua experiência com os homens explicava aquele sorriso de Mona Lisa, que a tornava superior a todo o conjunto de seres humanos do sexo masculino. Mas havia algo mais grave que ele não conseguia entender. Como uma prostituta, tão calejada como ela certamente era, poderia ter olhos de uma mulher pronta para se apaixonar como ela tinha, olhos de uma mulher virtuosa, casta, frágil? Ele não conseguia aceitar aquilo. No ápice da sua desilusão decidiu finalmente falar algo. Inclinou-se para frente e pediu que ela se aproximasse através de um sutil gesto com as mãos. Pôs sua boca próximo ao ouvido dela e perguntou carinhosa e objetivamente: “Quanto você cobra?”

4 comentários:

  1. Desculpe se o conto parece longo, mas vale a pena ler! Aliás, talvez eu ache que é bom simplesmente por ter escrito ouvindo Mozart e me sentir inspirado. Sejam sinceros nos comentários, por favor. Um abraço.

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  2. ...E faço questão de ser sincero no meu comentário.
    Engraçado, o conto é longo, mas ele parece passar tão rápido assim que começamos a lê-lo.
    Bom, Daniel, percebi que você está tomando, ou procurando, a forma de um estilo próprio, e isso é sinal de amadurecimento. Ainda mantenho o meu ponto de vista e, principalmente, meus elogios. :)

    Isso é tudo.


    Caio

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  3. Como não ser sincera?!
    Amei.amei.amei³
    São maravilhosos!
    Ao ler, não sei se é porque você os escreve com muita paixão, mas consigo sentir isso, simplesmemte maravilhoso!
    Ah, e a sua cara!

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  4. Fascinante, como sempre!

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