Não sei se são crônicas, contos ou artigos. Eu prefiro chamar de apenas pequenos pensamentos.
sábado, 27 de março de 2010
Uma história de amor que não importava
Era noite de outono. A temperatura amena dava margem ao suéter que ele vestia. Um suéter preto cujas mangas estavam puxadas até o cotovelo, como sempre. Havia feito a barba naquele dia, vestia a mais cara de suas calças e calçava um sapato que ganhou de presente do pai, quando este foi à Itália. Era seu primeiro encontro com ela. Ela era um ano mais velha que ele. Mas isso não importava. Ela sorria o tempo inteiro já que ele a entretia contando suas histórias, que para ele mesmo já pareciam enfadonhas. Talvez porque as ouviu demais, ainda que de sua própria boca. Vez por outra ela esboçava uma gargalhada. Ele tentava manter-se elegante, apenas com um largo sorriso. Ela vestia algo mais alegre que ele, afinal, ela era mais bem humorada, mais descontraída. Tratava-se de um vestido florido, com um decote na medida certa de sensualidade, que depois ele veio a saber que ela havia comprado especialmente para aquele encontro e na loja mais badalada do Shopping Leblon. Eles andavam a passos curtos, lentos e descompromissados em volta da iluminada Lagoa Rodrigo de Freitas. Era noite mais não era tarde. Finalmente pararam em um restaurante. Aquele das palafitas, cujo nome ele nunca se lembra. As comidas eram exóticas, mas eles haviam concordado que valia a pena provar. Enquanto ele sentou ela decidiu ir ao banheiro. Só aí ele teve tempo de se dar conta do que estava acontecendo. Ele iria jantar com a mulher que sempre almejou. E não era exagero pensar que aquilo era um jantar romântico. É bom evitar os exageros. Ele era pessimista, preferia achar que tudo daria errado pois se desse certo a alegria era maior. Ela voltou, com a maquiagem retocada. Depois de olharem o cardápio juntos, com as pernas de um encostando na do outro, pediram um vinho tinto: Casillero Del Diablo, Cabernet Sauvignon chileno, ano 2007. Não era um dos mais caros, mas era o que tinha aprendido a gostar com seu tio. De entrada pediram uns pães exóticos. Conversaram bastante, dessa vez com expressões faciais um pouco mais sérias. O assunto havia desviado para problemas familiares, ninguém sabe porque. Quando o vinho chegou ela provou e gostou. O elogiou pela escolha. Ele fez uma brincadeirinha idiota. Ela riu, mas sabia que era idiota. Mas isso não importava. O prato principal foi pedido após mais uns 15 minutos de conversa. Ele confessou que estava faminto. Ela não. Não estava ou não confessou. Pediram um tucunaré, peixe típico da Amazônia. Voltaram a sorrir quando o assunto entrou em música. Sobre isso ela falou com mais propriedade. Ele ficou impressionado e satisfeito com a inteligência que ela esboçava quando tratava de um assunto que dominava, porque tocava instrumentos musicais, enquanto ele apenas apreciava. Ela se desculpou por ter monologado sobre o assunto. Ele disse que não precisava se desculpar. Ele a olhava com atenção, sorrindo sem mostrar os dentes. Quando ela terminou de falar entrou um silêncio entre os dois. Ele ainda a olhava atentamente. Com os seus olhos castanhos fixados nos olhos azuis dela disse que a achava linda. Ela enrubesceu. Não pôde responder - o garçom havia chegado para servir o maldito tucunaré. O assunto ficou acerca do sabor do peixe. Enquanto comiam ele fez comentários espirituosos sobre o sabor dos ingredientes. Ela ria, às vezes sem controle. Adorava suas ironias. Algumas vezes lhe dava pequenos tapinhas no braço, típicos de mulher, pedindo que parasse para que ela pudesse mastigar. Mentira, ela estava adorando. De repente ele olhou o relógio, viu que faltava apenas 20 minutos para começar o filme que marcaram de assistir e cujos ingressos já haviam comprado pela internet. Não deu tempo para a sobremesa. Mas isso não importava. Por sorte o vinho já estava terminando, talvez por isso ela já estivesse tão risonha. Ele pediu a conta e pagou, sob protestos da moça que se dizia moderna o suficiente para dividir a conta. Ela reclamou ao longo de todo o caminho até carro. Uma reclamação boba, sem muita seriedade. Reclamava por se sentir desconfortável por depender dele naquele momento. Ele disse que era um cavalheiro, ela concordou. Eles se olharam por uns segundos e ele deu partida no carro: um gol cinza de 2 portas que ele havia acabado de comprar com todo o esforço de um jornalista iniciante. Aliás, ela ainda estava na faculdade de direito. Queria ser juíza. Sem demora eles pegaram a Epitácio Pessoa, seguindo até a Maria Quitéria, onde viraram. Dobraram à esquerda após a Praça Nossa Senhora da Paz e pegaram a Visconde de Pirajá até próximo à Praça General Osório. Ele estacionou e eles andaram até a Vieira Souto, onde se localizava o cinema. Era um pequeno cinema, mas que ele adorava. E também não queria levá-la a um shopping, preferia algo alternativo. Quanto ao caminho, ele decorou. Não conhecia Ipanema muito bem. O filme era do Almodóvar. Mas ele já havia assistido. Ela também, como ele descobriu depois. Naquele momento, no entanto, essas informações eram segredo. Ambos tinham segundas intenções. Entraram na sala de cinema com o filme já sendo exibido. Ainda bem que ele havia comprado os lugares mais próximos da porta. Sentaram-se. Ele passou a mão por debaixo dos cabelos pretos e lisos dela, tocando-lhe o rosto. Em segundos estavam se beijando. Em meia hora já faziam juras de amor ao pé do ouvido. Em 2 horas e 15 minutos já estavam de volta ao gol cinza comprado com todo o esforço de um jornalista iniciante. Em 4 horas estavam no apartamento dele na Tijuca. Em 6 horas estavam na cama, nus e ofegantes. Em 2 dias estavam sentados no La Mole almoçando, planejando uma viagem para o feriado e com alianças de compromisso nos respectivos dedos anelares das mãos direitas. Em 3 semanas estavam em Ilha Grande, durante o feriado do dia do trabalho. Em 2 anos estavam praticamente morando juntos, ela formada, esperando o resultado da prova da OAB e ele trabalhando como um louco em uma jornal sobre economia. Em 5 anos estavam em um avião da Air France, voando para Paris, onde passariam as férias e a lua de mel. Em 7 anos ela estava grávida e ele em outro jornal. Em 12 eles estavam andando no Central Park de Nova Iorque, cidade onde moravam – ele era correspondente e ela mãe de dois filhos dele. Em 30 anos estavam na formatura do primeiro filho – o curso era geologia. Em 40 anos ela se aposentava como promotora. Em 45 anos brincavam com os netos na varanda da casa que ele, agora escritor, construiu em Friburgo. Em 53 anos ele estava no Hospital Bandeirantes em São Paulo, para onde havia viajado para participar da Bienal do Livro – ela estava ao lado dele, com os olhos inchados de tanto chorar. Então ouviu-se um barulho incessante, irritante até. O barulho era contínuo e vinha de um aparelho. 7:15 da manhã de segunda-feira. Ele levantou de sua cama meio atordoado pelo som do despertador e pensou “Que sonho mais clichê”. Mas isso não importava, o sonho foi bom e o dia prometia ser longo, ele precisava tomar um banho.
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Eu li.
ResponderExcluirVocê me surpreendeu, viu?
Gostei da narrativa do texto, que ficou fácil para o entendimento do leitor. Também tem a presença de detalhes, bom vocabulário, conhecimento...
Vi que você esteve atento aos detalhes que reforçam ocasiões da história (“...um gol cinza de 2 portas que ele havia acabado de comprar com todo o esforço de um jornalista iniciante.”), e isso é importante.
“Ele” e “Ela”, eu adoro isto!
Particularmente, “ocultar” a identidade dos personagens dá um toque enigmático no conto, deixando-o mais sutil. Há mestres contistas que utilizam deste... Como posso dizer... Deste “estilo”, digamos. É Isso! Hehe’
Enfim, obrigado.
Caio C.
Ñ tenho td conhecimento de causa do amigo acima.
ResponderExcluirMas li
e gostei.
Abraço,
Não pude deixar de ler...
ResponderExcluirNão posso fazer comentarios a mais, mas como sempre vc escreve lindamente, e como sempre amo ler as coisas que vc escreve.
Beijos
G.
Acabei de me dar conta que meu personagem poderia ter sido pego pela Blitz do Detran. Infringiu a Lei Seca. Tsc Tsc Tsc.
ResponderExcluirAdorei, Daniel! Muito bonita a história e bem escrita! Parabéns!
ResponderExcluirUm conto delicado e impecável como este merece ser lido e relido. Por isso o fiz.
ResponderExcluirParabéns pelo talento, muito sucesso!
Beijos...