terça-feira, 1 de maio de 2012

Acabou Chorare

Ela tinha cinco anos. Devia ser inverno porque estava frio. Depois contaram que o fatídico tombo aconteceu numa casa alugada pela família na serra carioca – Petrópolis, parece. Era uma das lembranças mais distantes dela. Foi assim: a pequenina, toda agasalhada, veio correndo do jardim com o cachorro que se chamava Pinho, um Basset com cara de triste. Na disputa pelo primeiro lugar, o cão entrou pela porta numa diagonal e, estabanado, deu uma rasteira na competidora mirim. Fato é que a donzela bateu de cara no chão e danou a chorar. A mãe, histérica, correu aflita para lamber sua cria. A testinha ficou vermelha, deve ter dado uma baita dor de cabeça, mas não era motivo de muita preocupação. Quem descia as escadas impávido era o avô. Degrau a degrau, sem pressa para chegar, do jeito que lhe era típico. Para a neta, ele sempre exalou uma certa sabedoria. Ainda não era calvo, ainda não tinha uma pança muito notável, sequer usava o que se tornou depois o seu tradicional bigode, mas tinha a mesma serenidade com a qual ela se acostumou. Agachou ao lado da neta, que ainda se debulhava em lágrimas, escorregou a mão pela fronte do rosto úmido e disse baixinho: “Acabou chorare, ficou tudo lindo. De manhã cedinho, tudo cá cá cá, na fé fé fé...” Foi cantando todinha a música do Moraes Moreira, até o choro virar soluço, o soluço virar gagueira e a gagueira virar sorriso quando ele já dizia “Abelha, abelhinha... Acabou chorare, faz zunzum pra eu ver, faz zunzum pra mim.”

Sala de estar. Todos os parentes cabisbaixos, trocando poucas palavras, sem saber exatamente o que fazer. Alguns se apertavam no sofá, a neta ocupava a poltrona enquanto dois primos e um tio, em pé, faziam comentários esporádicos e inúteis como “É foda...” Estava frio, mas era outono. O tempo nublado lembrava São Paulo. A tia mais velha, que resolvia a problemática da documentação com uma coragem inabalável, abriu a porta da sala e deu ao recinto a primeira mudança brusca de ares no que parecia horas de marasmo, mas era, na verdade, algumas dezenas de minutos. Fora a última a chegar do cemitério do Caju porque passou na funerária para acertar tudo. Havia umas oito pessoas na sala. A neta deixou de ser autista, ergueu a cabeça e olhou em volta. Não tinha a testa vermelha, mas tinha olhos inchados pelo pranto. Mais silêncio preencheu a sala de estar. Um soluço ou outro apareciam cá e lá. E ela começou com a voz aveludada, tentando imitar Bebel Gilberto: “Acabou chorare, ficou tudo lindo. De manhã cedinho...” Nem todos conheciam bem a música, mas, no meio dela, conforme a voz de veludo se tornava amplamente audível e aquela moça tão doce roubava um pouco da sabedoria do avô que partira, alguns fizeram o zum zum zum da abelhinha. Repetiram frases soltas quando conseguiam cantar ao mesmo tempo que aprendiam a letra e deixavam a serenidade da canção substituir a de quem partia. Acabou chorare e alguns sorriram, um sorriso bobo e meio sem jeito, daqueles com a ternura de quem se conforma em ficar só com a lembrança do ente querido.

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