quinta-feira, 15 de abril de 2010

Ah, Camões!

Ao encarar um terrível naufrágio na foz do rio Mekong, no sudeste asiático, Luís de Camões, o maior escritor português de todos os tempos, precisou tomar a decisão mais difícil de sua vida: salvar sua amada ou o manuscrito de sua obra mais importante. Entre uma provável vida feliz ao lado de Dinamene e a chance de cravar seu nome na posteridade com um dos maiores épicos da literatura mundial, o escritor preferiu a segunda opção. Nadou para a sua salvação com um braço só, erguendo o outro acima da superfície para evitar molhar seus manuscritos. 450 anos depois, essa história ocupava o pensamento de um outro escritor em seus últimos instantes de vida. Internado com câncer de pulmão, ele já sabia que não ia viver muito mais. O que podia fazer naquele momento fatídico era dedicar-se a apreciar as memórias dos seus 81 anos de vida.

Ver as palavras surgirem no papel a partir da tinta preta de sua caneta em um fluxo excitante e sem interrupções lhe dava um imenso prazer. Pouco a pouco o fim de um trabalho que demorara exatamente 3 anos, 2 meses e 29 dias podia ser enxergado com nitidez antes impensável. As problemáticas de seu romance estavam se resolvendo de uma forma quase mágica, como se os céus tivessem decidido presenteá-lo com a dádiva da inspiração. O ambiente também era propício. As condições que ele mais gostava de ter para praticar seu ofício estavam presentes. O fim da transição entre o dia e a noite pintava o céu de um azul marinho diluído pelos últimos raios de sol. Com as janelas entreabertas, notava-se que a temperatura era amena o suficiente para manter o autor confortável em seu quarto vestindo apenas as calças de seu pijama e uma camisa de malha branca, sua cor preferida para roupas. O vento brando característico das noites das cidades montanhosas adentrava a sala sem pedir licença, mas também sem incomodar. Ele sentava-se em uma cadeira de madeira roubada da sala de jantar e escrevia em uma pequena mesa do mesmo material, mas de cor mais escura, onde jaziam suas ferramentas: as folhas de papel que precisava para escrever os capítulos finais, uma caneta esferográfica reserva, um dicionário de língua portuguesa, um maço de cigarros, um cinzeiro de vidro e duas velas, uma de cada lado da mesa. Por mais estranho que o hábito possa parecer, o escritor iluminava seu local de trabalho sempre com velas. Ele justificava a peculiaridade simplesmente dizendo que isso o facilitava na hora de acender seus cigarros e adicionava certo requinte ao ato de escrever. O resto do livro, ou seja, centenas de páginas que demoraram muito para serem elaboradas e foram relidas repetidas vezes, ficavam em uma caixa de sapatos, no chão, ao lado da mesa.

A avidez com a qual escrevia deixou seu corpo curvado sobre as folhas. No fundo, a vitrola cantava a Bossa Nova de Toquinho e Vinícius, do disco “O Poeta e o Violão” de 1975, completando o estado de inspiração sublime. Quando todas as ideias foram despejadas no papel, ele, agora calmamente, rabiscou as letras de seu nome e sobrenome do lado direito da última página, como se assinasse uma pintura. Só então se reclinou na cadeira. Soltou a caneta sobre a mesa, passou as mãos nos cabelos e suspirou, como se não acreditasse no que havia acabado de acontecer. Olhou para o capítulo final de sua obra com carinho. O sentimento era de dever cumprido. Ele sabia que seu romance era de qualidade, ele havia relido tudo que escreveu diversas vezes, e também sentia que o que tinha acabado de escrever conseguia finalizar toda a sua história de um modo espantosamente harmônico. Durante todo o tempo em que esteve escrevendo o livro ele temeu o final. A ideia que o motivou a começar a escrever aquela obra era bastante inovadora, mas ele nunca soube exatamente como concluí-la. No devido tempo, ele chegou a um ponto no livro em que não sabia como continuar. Parou por meses. Foi durante esse período que mais releu tudo o que já tinha escrito buscando inspiração. Naquele dia havia acordado com ideias inicialmente banais, mas que se desenvolveram para uma resolução magnífica.

Mais uma vez respirou fundo. Esticando o braço, alcançou o maço de cigarros. Pôs um no bolso da calça e acendeu o outro na vela da direita. Levantou da cadeira e foi tentar relaxar um pouco, afinal, sentia que seu trabalho havia efetivamente chegado ao fim. Abriu o armário da cozinha e pegou o seu precioso Blue Label. Ele só o bebia em ocasiões especiais e, apesar do momento aparentar ser simples para um observador distante, cabia perfeitamente nesse requisito mínimo. Abriu o refrigerador, encheu a mão direita de gelo para, em seguida, esvaziá-la no copo e servir-se do bom scotch. Com o copo de uísque nas mãos, a passos lentos, cheios de pensamento, caminhou rumo à sala. Pôs a mão direita, ainda gelada, no ombro de sua mulher. Sentada no sofá de couro, ela lia MacBeth pela terceira vez, agora em inglês. O toque assustou a amada. Ele sorriu. Ela não. Mas logo se entenderam. Ele sentou ao seu lado, explicou o que havia acontecido com toda a riqueza de detalhes que um bom escritor sabe emprestar às suas descrições. Ela mostrou-se satisfeita com a alegria contida de seu esposo. Beijou-lhe o rosto de forma pueril, mas com as duas mãos apertando-lhe a perna. Da bochecha a boca dela escorregou para a sua orelha onde sussurrou eroticamente: “Comemoremos”.

Um sorriso malicioso desenhou-se no rosto do nobre escritor. Ele livrou-se do cigarro que segurava com os lábios. Sua mão esquerda percorreu as costas da formosa dama, se escondendo sob sua blusa. Com a mesma mão a puxou para si e a beijou com ímpeto atípico. Sem mais delongas, ele deitou-a no sofá e começou a despi-la delicadamente, preparando o clímax como fazia em seus livros. Ela o olhava fundo nos olhos, esbanjando lascívia. Para ambos, aqueles procedimentos não configuravam algo natural. Mas nada havia de ser natural durante aquele dia. Enquanto os dois preparavam-se para saciar seus desejos ardentes, as velas, que tanto requinte traziam ao escrever do autor, continuavam a queimar. Queimando também estava o casal, dominado por um tesão nunca antes visto. Quando ele finalmente sentiu-se dentro dela e ouviu seu suspiro feroz, a vela, tão insignificante vela que estava exatamente do lado esquerdo da mesa, abandonou sua base frágil e mal feita e tombou. A chama que saía do pavio mudava de formato conforme o vento batia e ameaçava queimar a ponta das folhas que repousavam sobre a mesa. Pouco a pouco o fogo que finalmente abrasou a ponta do papel se espalhou para o resto do mesmo. A fogueira que se formou derreteu a parte de baixo da cera da vela da direita. Assim, a vela se partiu e a parte de cima foi ao chão. Ao cair, do lado de fora da mesa, a vela encontrou uma preciosa caixa de sapatos igualmente inflamável.

Eles faziam amor com o vigor de jovens amantes de final de semana, movendo até mesmo o sofá. Atingiram o ponto máximo de satisfação sexual juntos, em uma sincronia que consolidava o momento invejável. Exaustos, eles acariciavam um ao outro como se nada mais existisse além do amor entre os dois, típico de jovens casais recém-apaixonados. O cheiro de queimado, no entanto, lembrou o escritor que, na verdade, algo mais existia. Seu ritmo de batimento cardíaco não havia normalizado ainda quando ele se desvencilhou da esposa e correu nu rumo a seu escritório. De repente a visão aterradora. Ainda na porta do recinto, teve seu primeiro infarto.

Agora, com a morte efetivamente iminente lembrava o quanto passou perto da mesma naquela ocasião, muitos anos antes. A perda de sua obra-prima lhe tornou um homem triste e amargurado. Nunca mais foi o mesmo. Não tardou e sua mulher o abandonou. Sua vida perdeu toda a cor, toda a beleza. Pensando bem, havia muito tempo que o velho escritor esperava pelo que estava prestes a ter. Talvez isso tenha o motivado a fumar um maço e meio de cigarros por dia. Nos últimos momentos reconheceu que o cigarro era um algoz lento, mas infalível. Sentiu a pouca vida que lhe restava se preparando para se esgotar. Pensou no seu livro, no quanto teria vendido, na posteridade que agora provavelmente não teria. Lembrou de Camões e pensou “Se pelo menos eu tivesse tido as mesmas opções que ele”. E como se fechasse os olhos para uma soneca, morreu.

6 comentários:

  1. Ei, our Kid. Bossa-nova, Camões, "sem mais delongas", Macbeth, o cigarro faz mal. É bom ver que alguém está escrevendo de verdade! Gosto de você e gostei das descrições.

    um beijo, cara.

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  2. A Bossa-nova me é familiar.
    O ritmo que o texto toma, é incrível.
    O final, um tanto trágico.

    E como eu não me canso de repetir, é sempre surpreendente!
    Parabéns!

    Um grande beijo.

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  3. Como sempre digo M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O!

    Como sempre achei vc merece mto sucesso.

    Impressão minha ou enquanto eu não comento não tem post novo?!

    Beijos

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  4. A princípio parecia uma coisa meio chata, mas o final foi surpreendente. Parabéns.

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  5. Grazielle, não só é impressão como pretensão sua a de que só escrevo mediante a comentários seus. Mas enfim, apareça.

    E aos outros, a Bossa Nova, é o presentinho do Kinder Ovo, não é?

    Vou ver se escrevo mais.

    Au revoir.

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  6. Li o primeiro por último. Nem preciso dizer que são todos muito bons... já falei isso. Sua inspiração é iluminada. Quero ler o texto do senhorzinho da feira de São Cristóvão, qnd tiver novidades avise!

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