quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Adeus Vó Bia

“Quem é o presidente da República, vó?”, perguntava eu em pleno ano de 2011. “Getúlio Vargas,” respondia ela sem pestanejar. Natural que ele tenha marcado tanto a sua memória. Foi no governo de Vargas que Beatrice Casado de Barros chegou ao Rio de Janeiro, cheia de sonhos e sem muitas convicções. Foi na década seguinte à de sua chegada à capital que ela - jovem, bonita e muito trabalhadora – se viu beneficiada pelas leis trabalhistas que esse mesmo presidente sancionou, mostrando que a questão social não era caso de polícia, como dizia Washington Luís. Chamá-la de trabalhadora não é como aqueles usos desse adjetivo para descrever um sujeito quando não há algo mais interessante para falar sobre ele e sim um fato que se comprovava por aquilo que ela mais gostava de se vangloriar: teve, durante a maior parte da vida, dois empregos. Um no ministério da Fazenda, por onde se aposentou com salário generoso, e outro como costureira, atividade que ela ainda ansiava voltar a praticar, mesmo de cama. Quase oito décadas depois de chegar ao Rio, curiosamente, a memória dela permitia recordar com mais clareza os tempos longínquos do que o passado recente. Nos últimos dois ou três anos, todas as vezes que nos encontrávamos era preciso testar se ela de fato sabia quem eu era, mas Getúlio ela não esquecia. Também não esquecia a mãe, a espanhola Umbelina, que era professora de línguas em Maceió. Ou o irmão, que fora militar. Sobre grandes amores, houve sempre uma incógnita. Vó Bia engravidou tarde para a época - aos 37 anos - e de um homem que, poucos anos depois, ela viu traí-la em um restaurante na Av. Rio Branco. Era mulher de pulso firme: conta ela que jogou as roupas do sujeito pela janela e assumiu o desafio de criar o filho sozinha. Aparentemente, fez um bom trabalho porque o garoto acabou se tornando a pessoa que eu mais admiro – e certamente não sou o único. Mas por trás da casca grossa, havia uma pontinha de saudade que era revelada pela fotografia do casal que ela manteve sobre a sua cama redonda até o fim da vida. Ah, como ela era bonita. Quantos devem ter sido os homens que ela enlouqueceu com tamanha beleza, com o estilo de se vestir a frente do seu próprio tempo, com uma independência que a colocava na vanguarda de um movimento feminista do qual ela nem fazia parte. Todas as fotos guardavam um olhar decidido, de mulher que sabe exatamente o que quer. Nos últimos anos, ela dizia que queria morrer. Conversa fiada, certamente. Falava muitas coisas da boca pra fora, sabe. Mas era mesmo engraçado ouvi-la dizer todo final de ano que o ano seguinte seria o derradeiro, que daquele ela não passava. Dizia isso, aliás, mesmo quando andava sem dificuldades, quando eu, criança, só ia visitá-la na esperança de ganhar um presentinho. Mas era falar de dinheiro com a véia para ela logo se retrair.

Gostava do neto Fernando mais do que de todos os outros, afinal, ela o havia criado e ele, como bom trabalhador, tinha dois empregos também. Nos últimos dias perguntava preocupada às acompanhantes ele se estava brincando na rua sozinho, sem nenhum adulto olhando. Pequena falha de memória que não a deixava lembrar que ele, hoje, é um adulto de 40 anos. Mas o grande amor da vida dela era outro Fernando, o filho. Talvez a foto mais bonita que haja na casa vazia desde a manhã de hoje (21/12) seja uma tirada há cerca de 10 anos de mãe e filho na praia. Ela, com um sorriso sincero, mas cheio do mistério que sempre lhe foi característico, apoiava a mão sobre o peitoral do filho, num misto de carinho e proteção. Em 2008, quando meu pai ainda estava na China e eu já havia voltado, eu e ela nos víamos com frequência. Eram alguns minutos no começo da tarde que conversávamos antes de eu ir dar aulas de inglês. Nessas ocasiões, ela me contava um pouco da própria vida, mas claramente omitia muitos detalhes sem explicar exatamente o porquê. Era enfadonho contar todas as vezes que a visitava o que eu estava estudando e em que estava trabalhando, mas muitas vezes ouvia pérolas sobre a juventude do meu pai, sobre a sua própria infância em Alagoas, sobre o trabalho no ministério... Era engraçado ouví-la prometer que me arrumava um emprego com os amigos lá na Fazenda. Mal sabia, coitada, que a maior parte desses amigos já não estão mais vivos. Ela deve ter sido a última de todos os seus grupos de amizade. Quanto ao que eu escolhi como profissão, ela desaprovava com um argumento muito engraçado, mas não de todo equivocado: “Jornalistas mentem!”, dizia. Aliás, não estou sendo bom jornalista contando aqui histórias sobre a sua vida que eu nem sei exatamente o quão são verdadeiras, jogando luz sobre os poucos e talvez não tão interessantes fatos que eu conheço de uma história que durou 97 anos (segundo o registro oficial feito por ela quando já era adulta, tinha 92 anos, mas a certidão de batismo revelava que 1914 era o ano de seu nascimento). Mas Beatrice Casado de Barros não estará no Wikipédia. Ela nem soube o que era Wikipédia. Que esteja, pelo menos um pouco, no meu humilde e esporadicamente atualizado blog.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Mulheres como livros




A sua filosofia era se relacionar com mulheres como se elas fossem bons romances. O envolvimento começava sem muita intimidade, sem muitas expectativas, palavra por palavra, página por página. Aos poucos, a história começava a ganhar vida, o absorvia, a vontade de voltar à leitura passava pela sua cabeça várias vezes e os encontros eram mágicos, daqueles que fazem esquecer os problemas, que varam pela madrugada. E quando ele, sensível, apesar de crápula, chegava à última página do romance, era inevitável refletir sobre a vida sem aquela narrativa. A ternura com a qual virava as últimas páginas era a mesma com a qual consolava aquelas moças apaixonadas, que nada entendiam quando ele se despedia. Mas não pense que o rapaz não sofria. Elas faziam tanta falta quanto eles, os romances. Mas era da sua natureza não se apegar demais a alguém ao ponto de não conseguir largá-la.

É verdade que esse notório bon vivant tinha traquejo na conquista de suas vítimas. Mas aquela morena de Vila Isabel, que ele conheceu em uma roda de samba na Pedra do Sal, estava demorando para se render aos seus encantos. Era a segunda vez que ele a encontrava ali numa sexta-feira a noite. Ela ouvia o que ele tinha a dizer sem muita atenção, respondia com desleixo, enfim, não fazia a menor questão de dar bola para o malandro. A morena era sabida. Sabia que não deveria dar-lhe muita atenção porque, aquele ali, ela queria era fisgar e a estratégia da moça que veio lá do cantinho de Noel Rosa era abalar a auto-confiança do sujeito abusado. Ele cortejou, jogou as cantadas consideradas infalíveis, usou até letras dos sambas de Noel para fazer uma graça com a morena, mas, quando o samba acabou, ela pegou sua bolsa de renda branca igual à do vestido e foi caçar um táxi. Ele foi atrás, contra-argumentando à crítica que ela fizera ao jeito malandro, com chapéu panamá na cabeça e fala cheia de vocativos carinhosos. Enquanto ela entrava no táxi ele pediu o seu telefone. Sabia que ela não o tinha desgostado e que conseguiria algo com a morena caso insistisse, mostrando que o objetivo não era trocar alguns beijos ali, talvez uma boa transa, e adeus. Logo que a viu, no samba ao qual havia ido um mês antes, ele já decidira que ela seria seu Guerra e Paz, de León Tolstói – um dos mais volumosos romances que já se viu. Ela não revelou o telefone, mas prometeu que voltaria ao samba da Pedra do Sal em breve. A nega era esperta. Sua estratégia era esperar mais um mês. Se ele fosse a todos os sambas daquele mês a sua procura, significava que as pequenas promessas que fizera não eram meras falácias e eles haveriam de ficar juntos.

A dona do bar que fica na frente da roda de samba era amiga da mocinha da Vila e prometeu espiar para ver se o rapaz ia se dar ao trabalho. Veio a semana seguinte e antes de começar o batuque lá estava ele, sentado na cadeira azul de plástico, com as pernas cruzadas, ao lado de dois amigos do trabalho, bebendo uma boa Original®. Como observou a dona do bar numa ligação logo no dia seguinte, o homem não parava de olhar em volta. Buscava a morena como se não houvesse outra mulher no recinto. Ele não estava acostumado a ser rejeitado e não iria desistir facilmente, tanto que passou mais uma semana e lá foi ele de novo ao samba de sexta-feira. Os seus próprios amigos não acreditavam na insistência. Será que bastou a morena ignorar o camarada para ele ficar daquele jeito? O pior, pensavam todos, é que apesar de ele ser galanteador, aquela não havia sido a primeira a renegá-lo. Vale, inclusive, ressaltar que ele ia ao samba, conversava com todo mundo, mas não queria mais nenhuma outra mulher. Uma linda ruiva, por exemplo, se insinuou para ele na terceira sexta-feira seguida de uma forma que os próprios companheiros do trabalho descreveram como irresistível e ele, mesmo sem o menor compromisso, provou por A + B que a morena estava errada de julgar seu caráter pelo jeito malandro. Isso tudo ela mesma veio a saber nos ‘relatórios’ que recebia logo nas manhãs de sábado pelo telefone.

Para ela, a semana em que iria, finalmente, ceder ao malandro também foi de muita angústia. Já ficara claro que ele merecia a chance e que ela tinha de fato o fisgado. Ela tinha até medo de tanta certeza que já possuía quanto ao fato de que tudo ia dar certo. Em casa, enquanto tomava banho, dizia para si mesma que não deveria criar expectativas, afinal, ele poderia ter desistido de ir ao samba para procurá-la. Mas, no fundo, ela sabia que ele estaria lá de novo, com o mesmo chapéu panamá e os vocativos carinhosos, pronto para o encontro. E assim aconteceu.

Os sambistas tocavam a marchinha de carnaval Máscara Negra, de Zé Keti, quando os olhos dos dois se encontraram. Ela abriu um sorriso de dar gosto e ele, pagando de charmoso, fez uma cara de reprovação por ela ter demorado tanto, mas misturada com um risinho de canto de boca que revelava a falta de seriedade na reprimenda. Enquanto ela andava para ele, o via cantar: “Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, No meio da multidão.” Mas não deu tempo de esperar o pessoal terminar a música para que acontecesse o beijo. Quando a marcha chegou nos famosos versos “Vou beijar-te agora, Não me leve a mal, Hoje é carnaval” as línguas já se enroscavam e o panamá dele já tinha caído no chão. Só faltou chover para virar cena de cinema.

Mas ao contrário do que o leitor possa estar esperando, não houve reviravoltas. Esse conto romântico será mesmo otimista e eles ficarão juntos e terão pela frente uma duradoura história de amor. É que o rapaz nunca chegou a terminar de ler Guerra e Paz, do León Tolstói.