Um turbilhão de sentimentos. Apesar de clichê, a metáfora não é nada menos que apropriada para descrever o que ele sentia quando bateu a porta de casa, preparou a voz e xingou um palavrão dos mais escabrosos, daqueles que faz os velhos que moram ao lado – afinal, é Copacabana – resmungarem por semanas. No elevador, o vizinho do vigésimo andar olhou espantado para aquele homem furioso, que parecia pronto para esganar o primeiro que lhe oferecesse oposição em qualquer assunto. A porta do elevador abriu e ele saiu como se marchasse. Tolice. Aquele ainda era o terceiro andar. A culpa, obviamente, era dela. Depois de tê-lo irritado tanto, agora ele se via obrigado a esperar pelo próximo elevador – o vizinho, assustado, apertou o botão que fecha as portas antes que o mal elemento pudesse voltar atrás – ou a descer de escadas. Preferiu a segunda opção. No térreo, ao abrir a porta das escadas, não respondeu o simpático “boa tarde” que o porteiro cearense lhe estimou. O que tinha de simpático, esse porteiro tinha de vingativo. Se seu “boa tarde” não obteve resposta ele tampouco seria solicito ao ponto de apressar o passo ao sair do jardim para abrir o portão. Regou mais umas duas plantinhas antes de caminhar lentamente para fazer aquele que é trabalho inerente à sua profissão: apertar o interruptor na portaria.
Rua Miguel Lemos, quase esquina com Nossa Senhora de Copacabana. Dali saiu, ali parou. Só agora o pobre homem atormentado pelas desavenças geradas pelo amor se deu conta de que batera a porta de casa e de lá saíra sem rumo. Claro, claro. Ele precisava de uma boa caminhada para amadurecer a decisão drástica que anunciaria àquela vagabunda quando voltasse ao apartamento. Começou a andar rumo à praia.
Finalmente no calçadão da Av. Atlântica. Agora poderia colocar seus pensamentos em ordem. Muito bem, uma coisa era certa, aquele era o momento da separação. Como é possível um homem continuar vivendo com uma mulher após ser tão humilhado? Ela havia lançado qualificações vis sobre ele. Foi de egoísta, paranoico e hipócrita para baixo. E quando toda essa discussão havia começado, ele é quem detinha o poder da crítica, afinal, ele começara reclamando da forma agressiva como ela falava em certos momentos. Ao olhar para a sua esquerda ele notou que já havia andado quase dois quarteirões, acabara de passar a Xavier da Silveira e estava há menos de 30 metros da Bolívar.
Quando passou da Rua Bolívar lembrou que além de tudo ela havia se atrasado em quase 2 horas na noite anterior e ele ficou todo esse tempo como um paspalho sozinho na mesa. Onde já se viu? Todos os outros casais felizes trocando beijos e sorrisos nas mesas vizinhas – afinal, o gramado do vizinho sempre é mais verde – e ele ali, só, esperando por ela. E quando ela chegou, ele foi absolutamente carinhoso, apesar de não ter dado muitos sorrisos. Ela nem pediu desculpas mais de uma vez e no dia seguinte ainda foi grosseira. Chegou à Barão de Ipanema.
“Por que grosseira?”, ele se perguntou. Mas isso é evidente. Ela levantou da cama sem lhe oferecer qualquer carinho. Onde está o romantismo, ora bolas? Naquela semana eles completaram 2 anos juntos. Antigamente ela preparava o café da manhã para eles no sábado. Quando ele levantou ela já havia tomado café da manhã e assistia TV na sala. Por que não no quarto com ele? É, tudo indicava para o fim daquele relacionamento. Constante Ramos.
Ele foi reclamar, obviamente. Precisava dizer tudo que lhe incomodava. Ela respondeu com agressividade, não teve compaixão, não entendeu o seu incômodo. Vaca! Como pôde conviver com ela por tanto tempo. Não, não poderia de forma alguma aceitar aquele desamor. As ideias estavam límpidas em sua mente. Ele voltaria e diria que não quer mais morar com ela. Certamente conseguiria uma vaguinha na casa de seus pais no Méier. Agora que passava pela Rua Santa Clara decidira andar apenas mais um quarteirão, só até a Figueiredo Magalhães. De lá ele voltaria para fazer o anúncio fatídico.
Ele já se sentia mais calmo, a decisão que tomasse não seria mais no calor do momento. Já nem tinha mais raiva do porteiro, aquele paraíba sem-vergonha, preguiçoso, fofoqueiro... Toda a sua ira se voltara contra ela. Ele não sabia era como lidar com um pedido de desculpas. Imagine se ela pede desculpas, se decide não levar a discussão às últimas consequências. Ora, a Figueiredo Magalhães já estava chegando, mais uns 10 passos e ele teria que voltar, decidido a terminar tudo. Agora faltavam apenas mais uns 3 passos. E ele continuou. Passou direto da Figueiredo Magalhães. Iria andar pelo menos até a Siqueira Campos.
Mesmo com um pedido de desculpas, o orgulho daquele homem rijo continuaria ferido. Ele não poderia suportar olhar para aqueles lindos olhos castanhos que ela portava e não sentir raiva por ter deixado toda aquela discussão para trás. Afinal, ele é quem tinha razão. Ele tinha toda e qualquer razão que se é para ter nesse caso. Ele passou a Siqueira Campos e nem viu.
Quase chegando na Hilário de Gouveia ele começou a pensar na noite de sexta-feira. Talvez ela não tivesse chegado quase 2 horas atrasada. Se eles saíram de lá às 23:20, conforme o horário da ligação para o táxi denunciava no celular, e eles ficaram juntos no restaurante por cerca de 2 horas, ela chegou mais ou menos 1 hora e 20 minutos atrasada, já que ele mesmo chegou por volta de 20h. Tudo bem, 1 hora e 20 minutos ainda lhe parecia perdoável. Passou a Paula Freitas. Me refiro à rua, é bom deixar claro.
Que maldita dor de cabeça ele sentia quando chegou à Rua República do Peru. Já não aguentava mais pensar naquela discussão. Talvez fosse realmente melhor parar de se irritar com esse relacionamento e tentar a solteirice. Ora, já nem se lembrava como era a solteirice. Talvez fosse ainda pior. Olhou para o telefone e viu que não havia qualquer mensagem ou chamada não atendida. O que ela estava esperando? Ele chegar ao Leme? Pelo menos à Rua Fernando Mendes ele já havia chegado.
Deus, como ele já havia andado. Já estava quase chegando ao Copacabana Palace. Voltou a pensar nos insultos. Como lidar com adjetivos tão pouco amigáveis como aqueles que ela usou. Ele não poderia ignorar, aí estaria confirmando o estigma de hipócrita. Sinuca de bico. Essa era a situação em que se encontrava. Se ele aceitasse o pedido de desculpas dela, ele estaria ignorando seus valores mais intrínsecos. Como lidar com isso? Passou a Rodolfo Dantas.
Lembrou de quando se conheceram, em um dia chuvoso no Centro. Ele foi tão romântico ao ceder o guarda-chuva a ela quando saíram do elevador e ela comentou com uma amiga que não poderia se molhar, já que havia feito o cabelo naquele mesmo dia. Trabalhavam no mesmo prédio, ele advogado, ela publicitária. Como ele poderia deixar aquela mulher maravilhosa, se perguntou na esquina da Atlântica com a Rua Duvivier.
Ela insistia em não ligar. Talvez ela tivesse decidido pôr fim ao relacionamento. Ora, ele fora tão estúpido com suas reclamações. Como ele pôde reclamar de agressividade se havia sido muito mais agressivo com ela em seguida? E ainda por cima os motivos eram tão pequenos. Quando chegou à Rua Belfort Roxo sentiu um tremendo calafrio.
Já era. Se ele chegasse ao Leme sem que ela tentasse estabelecer contato, tudo estaria acabado e ele não teria mais qualquer chance. Nem através de flores, ou outdoors com frases que só ele e ela entenderiam, ou ainda cartas de amor, carros de som, ou seja lá o que for. Quando chegou à Prado Júnior ele sentiu medo, mas lembrou que Prado Júnior não é Leme, apesar de alguns espartalhões tentarem valorizar seus imóveis nos classificados dizendo que seus apartamentos naquela rua se localizam em um bairro melhor.
O que fazer? A esquina com a Princesa Isabel, que dividia Copacabana e Leme, se aproximava como um trem. Para piorar tudo, começou a chover. E ele nem guarda-chuva tinha. Por mais clichê que possa parecer, as gotas de chuva se misturaram às lágrimas sinceras de um homem que agora se sentia profundamente só. Foi quando o telefone vibrou. Era ela. Acalmou-se. Esperou tocar por alguns segundos antes de atendê-la. “Alô”, disse sua imprescindível namorada. E ele respondeu, sem delongas, “Sim, eu te perdoo! Agora, pega o carro e vem aqui me buscar porque está chovendo a beça!”