quarta-feira, 19 de maio de 2010

Notas antropológicas sobre um humilde vendedor de carne de sol

Três peças de carne sol penduradas por ganchos de metal serviam de cortina para esconder um homem de 71 anos que as vendia. Debruçado sobre o balcão de sua precária loja, ele comia aipim e ovo cozido com a tranquilidade que a terceira idade nos reserva. Seu olhar não era nada receptivo. Não precisava de muita intuição mercadológica para supôr que seus negócios não iam bem. Não precisava ser muito observador para perceber o quão ranzinza ele era. Ao contrário de tudo isso, tão logo quanto propôs-se ao paraibano de Campina Grande que ele contasse um pouco de sua vida, ele abandonou seus alimentos e começou a falar, com o ar de superioridade e experiência que a velhice implica quase que por definição.

Manuel é um homem triste. Suas mágoas vêm de tempos distantes. Há 41 anos ele deixou os pais em sua cidade natal e subiu na caçamba de um caminhão. Preso por uma corda para evitar cair, dormiu e acordou no meio do caminho para o Rio de Janeiro. Era o seu destino. Chegando aqui, trabalhou cuidando de malucos, mas concluiu que seu ramo era mesmo o da carne de sol. Montou uma barraca na feira de tradições nordestinas que há muito tempo está em São Cristóvão, Rio de Janeiro, ainda que não no mesmo lugar. Desde então, Manuel vende a especiaria tradicional de sua região. Por muitos anos teve lucro e seu ponto era no principal corredor da feira. Hoje, precisa lidar com a concorrência desleal dos grandes açougues da feira e sua barraca se localiza num dos corredores marginais, que ele chama de garganta do diabo.

É provável que a vida profissional de Manuel não seja tão interessante quanto a sua vida pessoal. Quando perguntado sobre sua família no Rio, ele me olhou com seriedade gélida e disse “Eu nem gosto muito de falar sobre essas coisas...” O silêncio só não tomou conta do ambiente naquele instante porque havia uma obra há alguns metros do local. Após uns 10 segundos, como quem não consegue se conter, o pobre Manuel disse “Mas como você perguntou, tenho que contar”.

A maior parte dos familiares de Manuel em Campina Grande já morreu e ele herdou terras na região. Perguntado porque ele não voltava para buscar ele respondeu com a maior naturalidade “Eu precisaria matar três ou quatro pessoas para reaver essas terras”. Mas não pense que o velho vendedor de carne de sol sentia-se satisfeito no Rio de Janeiro. Arrependido, ele diz que nunca deveria ter saído de sua terra, mas não voltou por orgulho. Ele havia brigado com os pais. Naquele tempo, no entanto, o jovem Manuel não imaginava que algo muito pior estava por vir.

Manuel hoje possui dois filhos de um casamento que lhe trouxe muita preocupação e raiva. No auge do seu sucesso com a venda de carne de sol, em uma época em que o negócio lhe dava condições de viver confortavelmente (apesar do paraibano dizer que os nordestinos não fazem questão de conforto, mas sim de estar “de bucho cheio”), Manuel possuía 8 funcionários. Um deles, no entanto, havia sido abandonado pela esposa e se sentiu carente. Entre idas e vindas à casa do patrão, acabou aproximando-se da esposa dele. Enquanto Manuel trabalhava duro em sua loja em pleno domingo, sua esposa e seu novo amor encheram um caminhão com toda a mobília da casa e partiram, deixando não só o já velho homem, mas também seus filhos.

Enquanto conta tudo isso, Manuel pausa, dá a impressão de que vai começar a chorar, mas continua firme e forte em seu balcão, agora apoiando seu braço com muita destreza sobre seu principal instrumento de trabalho: um facão, cuja ponta ele cravou em uma peça de carne de sol. Mas se o bom filho à casa torna, o mal também. Após um curto espaço de tempo a esposa de Manuel voltou pedindo abrigo e deixando o homem em uma situação difícil, afinal, seus filhos eram um fator a ser considerado. Ele se curva um pouco, como que para contar-me um segredo e confidencia que quis muito matá-la. Não o fez por dois motivos, provavelmente nessa ordem de relevância: primeiro, seus filhos ficariam desamparados e, em segundo lugar, seria preso. Para a nossa surpresa, o homem altivo e orgulhoso aceitou sua ex-mulher de volta, mas prometeu que ela seria tratada como empregada, ou seja, sem qualquer regalia ou poder dentro da casa. Assim o fez. Durante certo tempo sua ex-mulher vivia sem a sua menor atenção e até mesmo sem que ele se dirigisse diretamente a ela para falar seja lá o que for. A relação precisava ser mediada por um dos filhos.

Certo dia Manuel sentou-se em um boteco para beber e a ex-mulher pediu-lhe uma dose de sua cachaça. Ele, traindo seu método punitivo, cedeu, servindo-lhe a dose solicitada. “Mas Deus sabe o que faz”, conta ele sorrindo, para explicar que ceder à ela naquele dia representava algo especial. A mulher que o traiu acabou fazendo mais um pedido. Pediu que ele a mostrasse sua pistola. Mais uma vez, desviando de qualquer expectativa lógica, ele a levou até seu quarto e mostrou a pistola. Gabando-se de toda a sua rusticidade, nosso personagem principal contou que apontou o revólver para o chão e disparou até que sobrasse apenas uma bala. Não, ele não assassinou a mulher. Guardou a arma com sua única bala e saiu do recinto. Para o leitor atento, não é surpresa pensar que ela suicidou-se com essa mesma arma de fogo e essa bala derradeira. Já em sua narrativa, Manuel procura criar algum suspense. Diz que ao ouvir o tiro pensou que fossem bandidos do lado de fora da casa. Conta que ao chegar no quarto viu a capa que protegia a arma jogada no chão e a porta do banheiro trancada. Depois explica que arrombou a porta para vê-la sorrindo, sentada, com o sangue de sua cabeça marcando a parede de todo o recinto. Manuel sorri o sorriso da vingança. Ele diz que, ao vê-la assim, sentiu satisfação. Pode parecer estranho, assustador até, mas ele conta a história com um sorriso no rosto, sem pesar algum, como se falasse de outro assunto qualquer.

Mas engana-se quem pensa que Manuel é apenas esse homem frio e rancoroso. Ele brinca (ou não) dizendo que acha os cariocas preguiçosos, diz que naquela parte da feira só há “puta, ladrão e veado” e faz gozação com o próprio filho, que ele diz que se relaciona com qualquer tipo de mulher imaginável, por mais feia que ela possa ser. Mas o velho está desiludido. Quando perguntamos se ele foi feliz nos olhou pensativo, revelando com seu olhar tão expressivo que poderia ter sido mais. As palavras vieram em tom pouco convincente: “Teve um tempo que ganhei muito dinheiro e foi muito bom, agora já estou velho, não tem mais nada a fazer”. Por vezes ele disse que estava acabado, que seu fim estava próximo.Na verdade, ele parece cansado de trabalhar tantas horas, de não dormir entre o sábado e o domingo. Sobretudo, parece cansado da solidão que sente tendo a atenção apenas de sua filha. Também se sente cansado de se enganar de que seus produtos serão vendidos. Apesar de toda a tristeza que me invade ao notar a pavorosa realidade de um ser humano como Manuel e não apenas um personagem, como costuma-se ler nesse blog, senti-me também satisfeito por tê-lo dado o prazer de contar suas histórias e ter ouvintes atentos. E ele avisa “Só contei um quarto da minha vida a vocês, mas depois conto o resto”.