Ao encarar um terrível naufrágio na foz do rio Mekong, no sudeste asiático, Luís de Camões, o maior escritor português de todos os tempos, precisou tomar a decisão mais difícil de sua vida: salvar sua amada ou o manuscrito de sua obra mais importante. Entre uma provável vida feliz ao lado de Dinamene e a chance de cravar seu nome na posteridade com um dos maiores épicos da literatura mundial, o escritor preferiu a segunda opção. Nadou para a sua salvação com um braço só, erguendo o outro acima da superfície para evitar molhar seus manuscritos. 450 anos depois, essa história ocupava o pensamento de um outro escritor em seus últimos instantes de vida. Internado com câncer de pulmão, ele já sabia que não ia viver muito mais. O que podia fazer naquele momento fatídico era dedicar-se a apreciar as memórias dos seus 81 anos de vida.
Ver as palavras surgirem no papel a partir da tinta preta de sua caneta em um fluxo excitante e sem interrupções lhe dava um imenso prazer. Pouco a pouco o fim de um trabalho que demorara exatamente 3 anos, 2 meses e 29 dias podia ser enxergado com nitidez antes impensável. As problemáticas de seu romance estavam se resolvendo de uma forma quase mágica, como se os céus tivessem decidido presenteá-lo com a dádiva da inspiração. O ambiente também era propício. As condições que ele mais gostava de ter para praticar seu ofício estavam presentes. O fim da transição entre o dia e a noite pintava o céu de um azul marinho diluído pelos últimos raios de sol. Com as janelas entreabertas, notava-se que a temperatura era amena o suficiente para manter o autor confortável em seu quarto vestindo apenas as calças de seu pijama e uma camisa de malha branca, sua cor preferida para roupas. O vento brando característico das noites das cidades montanhosas adentrava a sala sem pedir licença, mas também sem incomodar. Ele sentava-se em uma cadeira de madeira roubada da sala de jantar e escrevia em uma pequena mesa do mesmo material, mas de cor mais escura, onde jaziam suas ferramentas: as folhas de papel que precisava para escrever os capítulos finais, uma caneta esferográfica reserva, um dicionário de língua portuguesa, um maço de cigarros, um cinzeiro de vidro e duas velas, uma de cada lado da mesa. Por mais estranho que o hábito possa parecer, o escritor iluminava seu local de trabalho sempre com velas. Ele justificava a peculiaridade simplesmente dizendo que isso o facilitava na hora de acender seus cigarros e adicionava certo requinte ao ato de escrever. O resto do livro, ou seja, centenas de páginas que demoraram muito para serem elaboradas e foram relidas repetidas vezes, ficavam em uma caixa de sapatos, no chão, ao lado da mesa.
A avidez com a qual escrevia deixou seu corpo curvado sobre as folhas. No fundo, a vitrola cantava a Bossa Nova de Toquinho e Vinícius, do disco “O Poeta e o Violão” de 1975, completando o estado de inspiração sublime. Quando todas as ideias foram despejadas no papel, ele, agora calmamente, rabiscou as letras de seu nome e sobrenome do lado direito da última página, como se assinasse uma pintura. Só então se reclinou na cadeira. Soltou a caneta sobre a mesa, passou as mãos nos cabelos e suspirou, como se não acreditasse no que havia acabado de acontecer. Olhou para o capítulo final de sua obra com carinho. O sentimento era de dever cumprido. Ele sabia que seu romance era de qualidade, ele havia relido tudo que escreveu diversas vezes, e também sentia que o que tinha acabado de escrever conseguia finalizar toda a sua história de um modo espantosamente harmônico. Durante todo o tempo em que esteve escrevendo o livro ele temeu o final. A ideia que o motivou a começar a escrever aquela obra era bastante inovadora, mas ele nunca soube exatamente como concluí-la. No devido tempo, ele chegou a um ponto no livro em que não sabia como continuar. Parou por meses. Foi durante esse período que mais releu tudo o que já tinha escrito buscando inspiração. Naquele dia havia acordado com ideias inicialmente banais, mas que se desenvolveram para uma resolução magnífica.
Mais uma vez respirou fundo. Esticando o braço, alcançou o maço de cigarros. Pôs um no bolso da calça e acendeu o outro na vela da direita. Levantou da cadeira e foi tentar relaxar um pouco, afinal, sentia que seu trabalho havia efetivamente chegado ao fim. Abriu o armário da cozinha e pegou o seu precioso Blue Label. Ele só o bebia em ocasiões especiais e, apesar do momento aparentar ser simples para um observador distante, cabia perfeitamente nesse requisito mínimo. Abriu o refrigerador, encheu a mão direita de gelo para, em seguida, esvaziá-la no copo e servir-se do bom scotch. Com o copo de uísque nas mãos, a passos lentos, cheios de pensamento, caminhou rumo à sala. Pôs a mão direita, ainda gelada, no ombro de sua mulher. Sentada no sofá de couro, ela lia MacBeth pela terceira vez, agora em inglês. O toque assustou a amada. Ele sorriu. Ela não. Mas logo se entenderam. Ele sentou ao seu lado, explicou o que havia acontecido com toda a riqueza de detalhes que um bom escritor sabe emprestar às suas descrições. Ela mostrou-se satisfeita com a alegria contida de seu esposo. Beijou-lhe o rosto de forma pueril, mas com as duas mãos apertando-lhe a perna. Da bochecha a boca dela escorregou para a sua orelha onde sussurrou eroticamente: “Comemoremos”.
Um sorriso malicioso desenhou-se no rosto do nobre escritor. Ele livrou-se do cigarro que segurava com os lábios. Sua mão esquerda percorreu as costas da formosa dama, se escondendo sob sua blusa. Com a mesma mão a puxou para si e a beijou com ímpeto atípico. Sem mais delongas, ele deitou-a no sofá e começou a despi-la delicadamente, preparando o clímax como fazia em seus livros. Ela o olhava fundo nos olhos, esbanjando lascívia. Para ambos, aqueles procedimentos não configuravam algo natural. Mas nada havia de ser natural durante aquele dia. Enquanto os dois preparavam-se para saciar seus desejos ardentes, as velas, que tanto requinte traziam ao escrever do autor, continuavam a queimar. Queimando também estava o casal, dominado por um tesão nunca antes visto. Quando ele finalmente sentiu-se dentro dela e ouviu seu suspiro feroz, a vela, tão insignificante vela que estava exatamente do lado esquerdo da mesa, abandonou sua base frágil e mal feita e tombou. A chama que saía do pavio mudava de formato conforme o vento batia e ameaçava queimar a ponta das folhas que repousavam sobre a mesa. Pouco a pouco o fogo que finalmente abrasou a ponta do papel se espalhou para o resto do mesmo. A fogueira que se formou derreteu a parte de baixo da cera da vela da direita. Assim, a vela se partiu e a parte de cima foi ao chão. Ao cair, do lado de fora da mesa, a vela encontrou uma preciosa caixa de sapatos igualmente inflamável.
Eles faziam amor com o vigor de jovens amantes de final de semana, movendo até mesmo o sofá. Atingiram o ponto máximo de satisfação sexual juntos, em uma sincronia que consolidava o momento invejável. Exaustos, eles acariciavam um ao outro como se nada mais existisse além do amor entre os dois, típico de jovens casais recém-apaixonados. O cheiro de queimado, no entanto, lembrou o escritor que, na verdade, algo mais existia. Seu ritmo de batimento cardíaco não havia normalizado ainda quando ele se desvencilhou da esposa e correu nu rumo a seu escritório. De repente a visão aterradora. Ainda na porta do recinto, teve seu primeiro infarto.
Agora, com a morte efetivamente iminente lembrava o quanto passou perto da mesma naquela ocasião, muitos anos antes. A perda de sua obra-prima lhe tornou um homem triste e amargurado. Nunca mais foi o mesmo. Não tardou e sua mulher o abandonou. Sua vida perdeu toda a cor, toda a beleza. Pensando bem, havia muito tempo que o velho escritor esperava pelo que estava prestes a ter. Talvez isso tenha o motivado a fumar um maço e meio de cigarros por dia. Nos últimos momentos reconheceu que o cigarro era um algoz lento, mas infalível. Sentiu a pouca vida que lhe restava se preparando para se esgotar. Pensou no seu livro, no quanto teria vendido, na posteridade que agora provavelmente não teria. Lembrou de Camões e pensou “Se pelo menos eu tivesse tido as mesmas opções que ele”. E como se fechasse os olhos para uma soneca, morreu.
Não sei se são crônicas, contos ou artigos. Eu prefiro chamar de apenas pequenos pensamentos.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Precipício Precipitado
Ele estava decidido a suicidar-se. Já estava em pé no parapeito do terraço daquele prédio litorâneo de 12 andares. Olhava para frente, como se tentasse encarar o que estava por vir, e via outros prédios, maiores do que o seu. Talvez aquela fosse uma metáfora para a sua própria vida. Por isso mesmo decidiu pôr um fim a ela. Ele não temia a dor que iria sentir ao estabacar-se no chão. Também não tinha medo de arrepender-se enquanto estava no ar e muito menos pensava no que os outros sentiriam após a sua partida. Em sua mente, tudo conspirava para que ele realmente tomasse tal decisão. No entanto, quando mais podia-se dizer que ele não desistiria do ato suicida, ele desceu do parapeito. Com as mãos apoiadas nele, olhou novamente para os prédios e a cidade como um todo, agora de um lugar um pouco mais baixo. Respirou fundo. Então, virou-se para trás e começou a caminhar na direção contrária. Seus passos eram lentos e seus olhos fitavam o chão. Sua expressão era de gravidade, quase sofrimento. Ao longo da caminhada, lágrimas escassas marcavam o chão de ardósia. Chegou ao parapeito oposto ao que estava. Sem muita dificuldade ele subiu para exatamente a mesma posição que estava do outro lado, colocando a perna esquerda no alto primeiro. Ele buscava era a vista para o mar. “Se morrerei, que morra com uma bela vista” pensou ele.
Fixou seu olhar no horizonte e começou a concentrar-se para pular. Como parte dessa concentração pré-suicídio ele decidira pôr na mente algo que quisesse perpetuar, que merecia a honra de seu último pensamento. Não havia, porém, algo em sua vida que claramente merecesse ocupar esse posto. Ele teve que vasculhar um pouco em sua memória. Foi aí, durante o derradeiro processo mental, que lembrou de seu primeiro grande amor. Tratava-se de uma bela mocinha cujo corpo esbelto, voz aveludada e forma atenciosa de lhe tratar haviam resultado em tremenda paixão por parte do rapaz. Ela se mudou para Porto Alegre devido a estudos universitários e o deixou no Rio, mesmo confessando que o amava. Há quem diga que são coisas da juventude, mas para ele, que já não era tão jovem assim, as memórias daquele amor pareciam ser as mais doces, sérias e comprometidas de toda a sua inútil vida. Ele lembrava com exatidão o teor de tristeza que os olhos dela, negros como uma pérola, carregavam quando se despediu dele na rodoviária. Nunca esqueceu as noites de amor que tinham quando fugiam, as conversas francas e divertidas que desenvolviam no caminho para a escola, os planos ingênuos e caprichosos que faziam juntos, etc. Naquele momento se deu conta de que era incompreensível sofrer tanto por ter perdido a esposa com quem não dividia nenhum interesse e que suicidar-se por conta disso seria burrice. É óbvio que ter perdido o emprego, ter que vender o apartamento por conta da divisão de bens e ter visto o Vasco ser rebaixado para a segunda divisão contribuíam para aquela rua sem saída na qual se encontrava, mas o cerne da questão era ter sido abandonado por sua ex-mulher alguns meses antes.
Ele lembrou que tinha o endereço desse seu primeiro amor em Porto Alegre guardado em algum lugar e recentemente havia ouvido dizer que ela também estava se divorciando. Não seria má ideia mudar-se para Porto Alegre, afinal, aquela era uma cidade que ele gostaria de conhecer. Assim, ele se apaixonaria de novo pela linda moça e esqueceria a ex-mulher, conseguiria um novo emprego e de quebra poderia dedicar-se a esquecer o Vasco e começar a torcer para o Internacional. Era isso. Seus problemas estavam todos resolvidos. Ele nunca sentiu tanta vontade de viver como sentira naquele momento. Decidiu descer do parapeito e desistir da ideia que agora via como louca. Desatento, só então notou que as pessoas já se aglomeravam embaixo do prédio pedindo para que ele não pulasse. Ele sorriu, banalizando a situação, e virou-se de costas, decidido a não se suicidar. No entanto, este glorioso homem subestimou o vento que bate em regiões litorâneas. Tentou equilibrar-se quando sentiu que involuntariamente ia cair, mas não teve jeito. Com a maior expressão de horror possível estampada em seu rosto, viu-se tombar para trás. E flutuou no ar como se fosse um pássaro. Se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. E morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
Fixou seu olhar no horizonte e começou a concentrar-se para pular. Como parte dessa concentração pré-suicídio ele decidira pôr na mente algo que quisesse perpetuar, que merecia a honra de seu último pensamento. Não havia, porém, algo em sua vida que claramente merecesse ocupar esse posto. Ele teve que vasculhar um pouco em sua memória. Foi aí, durante o derradeiro processo mental, que lembrou de seu primeiro grande amor. Tratava-se de uma bela mocinha cujo corpo esbelto, voz aveludada e forma atenciosa de lhe tratar haviam resultado em tremenda paixão por parte do rapaz. Ela se mudou para Porto Alegre devido a estudos universitários e o deixou no Rio, mesmo confessando que o amava. Há quem diga que são coisas da juventude, mas para ele, que já não era tão jovem assim, as memórias daquele amor pareciam ser as mais doces, sérias e comprometidas de toda a sua inútil vida. Ele lembrava com exatidão o teor de tristeza que os olhos dela, negros como uma pérola, carregavam quando se despediu dele na rodoviária. Nunca esqueceu as noites de amor que tinham quando fugiam, as conversas francas e divertidas que desenvolviam no caminho para a escola, os planos ingênuos e caprichosos que faziam juntos, etc. Naquele momento se deu conta de que era incompreensível sofrer tanto por ter perdido a esposa com quem não dividia nenhum interesse e que suicidar-se por conta disso seria burrice. É óbvio que ter perdido o emprego, ter que vender o apartamento por conta da divisão de bens e ter visto o Vasco ser rebaixado para a segunda divisão contribuíam para aquela rua sem saída na qual se encontrava, mas o cerne da questão era ter sido abandonado por sua ex-mulher alguns meses antes.
Ele lembrou que tinha o endereço desse seu primeiro amor em Porto Alegre guardado em algum lugar e recentemente havia ouvido dizer que ela também estava se divorciando. Não seria má ideia mudar-se para Porto Alegre, afinal, aquela era uma cidade que ele gostaria de conhecer. Assim, ele se apaixonaria de novo pela linda moça e esqueceria a ex-mulher, conseguiria um novo emprego e de quebra poderia dedicar-se a esquecer o Vasco e começar a torcer para o Internacional. Era isso. Seus problemas estavam todos resolvidos. Ele nunca sentiu tanta vontade de viver como sentira naquele momento. Decidiu descer do parapeito e desistir da ideia que agora via como louca. Desatento, só então notou que as pessoas já se aglomeravam embaixo do prédio pedindo para que ele não pulasse. Ele sorriu, banalizando a situação, e virou-se de costas, decidido a não se suicidar. No entanto, este glorioso homem subestimou o vento que bate em regiões litorâneas. Tentou equilibrar-se quando sentiu que involuntariamente ia cair, mas não teve jeito. Com a maior expressão de horror possível estampada em seu rosto, viu-se tombar para trás. E flutuou no ar como se fosse um pássaro. Se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. E morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
Olhos cândidos e o sorriso de Mona Lisa
Seu hobby era a fotografia. E muitas vezes extrapolava o limite do hobby entrando na categoria do vício. Mas havia uma peculiaridade sobre esse seu vício/hobby: ele só fotografava mulheres. Caetano Veloso provavelmente diria que isso é “heterossexual demais”, palavras que um dia usou para descrever Woody Allen. Mas, no fundo, fotografar mulheres para esse homem de meia idade era uma forma de expressar sua admiração pela complexidade do sexo feminino. Não havia nas suas fotos um compromisso em fotografar apenas as mulheres mais belas, mas de evidenciar a beleza das mulheres de um modo geral. De qualquer forma, ele manteve seu hábito de sair para fotografar damas na pequena cidade para a qual havia se mudado. Inclusive, restringir-se às mulheres locais lhe parecia, inicialmente, uma boa temática a ser seguida.
Quando terminou de se acomodar à nova casa, sentou-se na poltrona púrpura e puxou para si a sua Leica M3, de 1954, máquina fotográfica que herdou do pai, assim como o interesse por fotografia. A grande atenção a formas e expressões femininas também era herança do seu progenitor, um galanteador admirável. Quanto à Leica M3, ele a tratava com o carinho que tratava as próprias mulheres, tanto as que fotografava como as com quem se relacionava, havendo, inclusive, uma interseção entre esses grupos. Não tardou para que ele descesse a passos rápidos as escadas que separavam a porta principal do pequeno portão de ferro com sua raridade pendurada no ombro direito, dentro de uma pequena bolsa protetora. Vestia seus tradicionais suspensórios sobre uma camisa de botão bege. A calça era verde musgo. Um antigo chapéu-panamá e o par de sapatos marrom completavam o indumentário alternativo. É claro que em uma cidade com menos de dez mil habitantes, um homem vestido desta forma, com uma câmera tão antiga nas mãos, atrairia atenção. Logo, as fotos não pareceriam espontâneas. Isso o forçou a usar métodos que não gostava: pedia às mulheres que posassem para ele ao invés de tentar fotografá-las sem que notassem. E assim passou o dia abordando mulheres gentilmente, clicando e agradecendo.
Já era noite quando ele abriu a porta de casa e ligou o abajur. O modo como subira as escadas, em contraposição à disposição com a qual havia descido os mesmos degraus horas antes, prenunciava seu cansaço. Até mais do que cansado, ele parecia pouco entusiasmado com as fotos que logo revelaria em seu laboratório. Ele pensava que fotos posadas não renderiam bom material artístico. Pelo menos ele voltaria a revelar suas fotos com as próprias mãos, depois de tanto tempo em um apartamento onde não havia espaço para sua parafernalha. Aliás, quando trata-se de revelação do filme fotográfico, a sala totalmente sem luz, que a muitos causa pavor, lhe trazia tranquilidade e até nostalgia, relembrando assim o tempo em que aprendeu a revelar com o pai. Mas foi à luz vermelha que teve o maior prazer daquele dia. Ao observar as fotos que havia produzido parou em uma e ficou analisando-a fixamente, por minutos a fio. O que o impressionou foi uma linda mulher. Mais especificamente, o olhar e o sorriso de uma mulher.
Não conseguiu dormir. Em sua cabeça estavam os olhos verdes daquela mulher. Olhos de inocência e pureza. Ao mesmo tempo ele também não esquecia o seu sorriso paradoxalmente malicioso e enervante. Levantou da cama rendendo-se à tentação de ver a fotografia novamente. Tapou metade da foto e focou nos olhos da moça. Seu olhar revelava o quão indefesa ela era, revelava o quanto precisava de proteção, de amor, de carinho. Ao mesmo tempo, tapando-lhe os olhos, via um sorriso de deboche. Foi quando uma luz lhe agraciou a mente e o fez ver que aquele sorriso não se diferenciava em nada do mais famoso sorriso da história da arte: o de Mona Lisa.
Bobo de sua parte fazer uma comparação herege como aquela, afinal, o sorriso de Mona Lisa havia sido exaustivamente estudado e não seria uma mocinha provinciana que captaria a sua essência ao ponto de usá-lo assim, tão naturalmente. Ainda mais com olhos que tão claramente revelavam uma inocência que ninguém acreditava que Mona Lisa possuía. Como ela ousava tal despautério? Ele precisava conhecer aquela mulher imediatamente.
Nasceu o sol. Ele olhava-se no espelho enquanto pensava. Para ele era um costume encostar o ombro no vão da porta do banheiro e ver-se pensar através do espelho. Uma forma, talvez, de se enganar quanto à solidão que vivia desde o fim do seu terceiro matrimônio. O sono recusava-se a chegar. Suas olheiras demonstravam que o problema era rotineiro. Ele forçava a memória para lembrar quando e onde havia fotografado aquela mulher. Culpava-se por não ter notado todo o seu esplendor no momento em que a fotografou. Talvez fosse mesmo a hora de passar para as câmeras digitais. Pegou a foto, a pôs no bolso interno de sua jaqueta e decidiu rumar para o centro da cidade. Ainda era cedo quando ele sentou em um dos bancos da praça e começou a esperar ela passar. Ela não passou. Ele voltou pra casa sentindo-se um fracassado por ter perdido tanto tempo por conta de um maldito sorriso e um olhar. Mas no dia seguinte não resistiu e foi perambular pela cidade com o mesmo propósito. E ele fez isso por meses, intercalando horários e locais. Não compreendia como, em uma cidade tão pequena, ele não conseguia achar determinada pessoa após meses de busca. E assim como a dor da perda de um grande amor, sua ânsia de vê-la foi diminuindo, sua esperança de encontrá-la foi desbotando, a paixão por aquela mulher misteriosa foi perdendo espaço na sua vida e na sua mente, até que se tornou uma pequena lembrança que vinha lhe atormentar apenas esporadicamente.
Era uma ensolarada manhã dominical. Desceu as escadas lentamente, tomando os cuidados que a terceira idade exige. Empurrou o portão com a bengala que sempre lhe acompanhava, demonstrando uma certa rabugice. Fechou o portão sem trancá-lo e saiu em sua caminhada rumo à padaria. Antes de sentar-se para o café da manhã parou no jornaleiro. Lançou mãe de um seco “bom dia” para cumprimentá-lo, pegou o jornal e pagou, sem mais palavras. Na padaria, pediu um pão com manteiga e um copo de café e abriu seu jornal. Intercalava mordidas no pão gorduroso e goladas no café sem açúcar com matérias especiais do jornal de domingo. Até que, de repente, não mais que de repente, ele congelou com uma visão. Na mesa oposta à sua, viu olhos que conhecia bem, com o mesmo conteúdo cândido que tantas vezes lhe tirou não só o sono como a concentração. Seus olhos estavam azulados naquele momento, provavelmente por conta do sol, mas eram certamente os mesmos olhos pelos quais havia se apaixonado. As rugas que já consumiam levemente a pele do rosto dela não anulavam a sua beleza. Ela ainda era uma mulher atraente. Ele levantou-se abandonando café, pão e jornal e pediu licença para sentar-se com a misteriosa dama. Ela estranhou. Ele então puxou de dentro de sua caderneta, comum aos idosos, uma fotografia. Mostrou a ela e perguntou se reconhecia aquela pessoa. Claro que ela reconhecia. Eles conversaram por um tempo. Até que ele contou que a procurou. Ela disse que havia ido a São Paulo fazer negócios e ficou morando lá por um tempo. Ele perguntou sobre os negócios. Houve silêncio. Então ela sorriu o sorriso de Mona Lisa. Ele quase teve um infarte de tanta emoção. “Sou prostituta desde muito antes de você me fotografar”, ela confessou. Ela explicou que o mercado em São Paulo era melhor, mas que ela acabou voltando porque sentia falta da sua cidade local. Disse várias outras coisas, mas ele não ouvia. Estava extasiado com a notícia. Realmente, sua experiência com os homens explicava aquele sorriso de Mona Lisa, que a tornava superior a todo o conjunto de seres humanos do sexo masculino. Mas havia algo mais grave que ele não conseguia entender. Como uma prostituta, tão calejada como ela certamente era, poderia ter olhos de uma mulher pronta para se apaixonar como ela tinha, olhos de uma mulher virtuosa, casta, frágil? Ele não conseguia aceitar aquilo. No ápice da sua desilusão decidiu finalmente falar algo. Inclinou-se para frente e pediu que ela se aproximasse através de um sutil gesto com as mãos. Pôs sua boca próximo ao ouvido dela e perguntou carinhosa e objetivamente: “Quanto você cobra?”
Quando terminou de se acomodar à nova casa, sentou-se na poltrona púrpura e puxou para si a sua Leica M3, de 1954, máquina fotográfica que herdou do pai, assim como o interesse por fotografia. A grande atenção a formas e expressões femininas também era herança do seu progenitor, um galanteador admirável. Quanto à Leica M3, ele a tratava com o carinho que tratava as próprias mulheres, tanto as que fotografava como as com quem se relacionava, havendo, inclusive, uma interseção entre esses grupos. Não tardou para que ele descesse a passos rápidos as escadas que separavam a porta principal do pequeno portão de ferro com sua raridade pendurada no ombro direito, dentro de uma pequena bolsa protetora. Vestia seus tradicionais suspensórios sobre uma camisa de botão bege. A calça era verde musgo. Um antigo chapéu-panamá e o par de sapatos marrom completavam o indumentário alternativo. É claro que em uma cidade com menos de dez mil habitantes, um homem vestido desta forma, com uma câmera tão antiga nas mãos, atrairia atenção. Logo, as fotos não pareceriam espontâneas. Isso o forçou a usar métodos que não gostava: pedia às mulheres que posassem para ele ao invés de tentar fotografá-las sem que notassem. E assim passou o dia abordando mulheres gentilmente, clicando e agradecendo.
Já era noite quando ele abriu a porta de casa e ligou o abajur. O modo como subira as escadas, em contraposição à disposição com a qual havia descido os mesmos degraus horas antes, prenunciava seu cansaço. Até mais do que cansado, ele parecia pouco entusiasmado com as fotos que logo revelaria em seu laboratório. Ele pensava que fotos posadas não renderiam bom material artístico. Pelo menos ele voltaria a revelar suas fotos com as próprias mãos, depois de tanto tempo em um apartamento onde não havia espaço para sua parafernalha. Aliás, quando trata-se de revelação do filme fotográfico, a sala totalmente sem luz, que a muitos causa pavor, lhe trazia tranquilidade e até nostalgia, relembrando assim o tempo em que aprendeu a revelar com o pai. Mas foi à luz vermelha que teve o maior prazer daquele dia. Ao observar as fotos que havia produzido parou em uma e ficou analisando-a fixamente, por minutos a fio. O que o impressionou foi uma linda mulher. Mais especificamente, o olhar e o sorriso de uma mulher.
Não conseguiu dormir. Em sua cabeça estavam os olhos verdes daquela mulher. Olhos de inocência e pureza. Ao mesmo tempo ele também não esquecia o seu sorriso paradoxalmente malicioso e enervante. Levantou da cama rendendo-se à tentação de ver a fotografia novamente. Tapou metade da foto e focou nos olhos da moça. Seu olhar revelava o quão indefesa ela era, revelava o quanto precisava de proteção, de amor, de carinho. Ao mesmo tempo, tapando-lhe os olhos, via um sorriso de deboche. Foi quando uma luz lhe agraciou a mente e o fez ver que aquele sorriso não se diferenciava em nada do mais famoso sorriso da história da arte: o de Mona Lisa.
Bobo de sua parte fazer uma comparação herege como aquela, afinal, o sorriso de Mona Lisa havia sido exaustivamente estudado e não seria uma mocinha provinciana que captaria a sua essência ao ponto de usá-lo assim, tão naturalmente. Ainda mais com olhos que tão claramente revelavam uma inocência que ninguém acreditava que Mona Lisa possuía. Como ela ousava tal despautério? Ele precisava conhecer aquela mulher imediatamente.
Nasceu o sol. Ele olhava-se no espelho enquanto pensava. Para ele era um costume encostar o ombro no vão da porta do banheiro e ver-se pensar através do espelho. Uma forma, talvez, de se enganar quanto à solidão que vivia desde o fim do seu terceiro matrimônio. O sono recusava-se a chegar. Suas olheiras demonstravam que o problema era rotineiro. Ele forçava a memória para lembrar quando e onde havia fotografado aquela mulher. Culpava-se por não ter notado todo o seu esplendor no momento em que a fotografou. Talvez fosse mesmo a hora de passar para as câmeras digitais. Pegou a foto, a pôs no bolso interno de sua jaqueta e decidiu rumar para o centro da cidade. Ainda era cedo quando ele sentou em um dos bancos da praça e começou a esperar ela passar. Ela não passou. Ele voltou pra casa sentindo-se um fracassado por ter perdido tanto tempo por conta de um maldito sorriso e um olhar. Mas no dia seguinte não resistiu e foi perambular pela cidade com o mesmo propósito. E ele fez isso por meses, intercalando horários e locais. Não compreendia como, em uma cidade tão pequena, ele não conseguia achar determinada pessoa após meses de busca. E assim como a dor da perda de um grande amor, sua ânsia de vê-la foi diminuindo, sua esperança de encontrá-la foi desbotando, a paixão por aquela mulher misteriosa foi perdendo espaço na sua vida e na sua mente, até que se tornou uma pequena lembrança que vinha lhe atormentar apenas esporadicamente.
Era uma ensolarada manhã dominical. Desceu as escadas lentamente, tomando os cuidados que a terceira idade exige. Empurrou o portão com a bengala que sempre lhe acompanhava, demonstrando uma certa rabugice. Fechou o portão sem trancá-lo e saiu em sua caminhada rumo à padaria. Antes de sentar-se para o café da manhã parou no jornaleiro. Lançou mãe de um seco “bom dia” para cumprimentá-lo, pegou o jornal e pagou, sem mais palavras. Na padaria, pediu um pão com manteiga e um copo de café e abriu seu jornal. Intercalava mordidas no pão gorduroso e goladas no café sem açúcar com matérias especiais do jornal de domingo. Até que, de repente, não mais que de repente, ele congelou com uma visão. Na mesa oposta à sua, viu olhos que conhecia bem, com o mesmo conteúdo cândido que tantas vezes lhe tirou não só o sono como a concentração. Seus olhos estavam azulados naquele momento, provavelmente por conta do sol, mas eram certamente os mesmos olhos pelos quais havia se apaixonado. As rugas que já consumiam levemente a pele do rosto dela não anulavam a sua beleza. Ela ainda era uma mulher atraente. Ele levantou-se abandonando café, pão e jornal e pediu licença para sentar-se com a misteriosa dama. Ela estranhou. Ele então puxou de dentro de sua caderneta, comum aos idosos, uma fotografia. Mostrou a ela e perguntou se reconhecia aquela pessoa. Claro que ela reconhecia. Eles conversaram por um tempo. Até que ele contou que a procurou. Ela disse que havia ido a São Paulo fazer negócios e ficou morando lá por um tempo. Ele perguntou sobre os negócios. Houve silêncio. Então ela sorriu o sorriso de Mona Lisa. Ele quase teve um infarte de tanta emoção. “Sou prostituta desde muito antes de você me fotografar”, ela confessou. Ela explicou que o mercado em São Paulo era melhor, mas que ela acabou voltando porque sentia falta da sua cidade local. Disse várias outras coisas, mas ele não ouvia. Estava extasiado com a notícia. Realmente, sua experiência com os homens explicava aquele sorriso de Mona Lisa, que a tornava superior a todo o conjunto de seres humanos do sexo masculino. Mas havia algo mais grave que ele não conseguia entender. Como uma prostituta, tão calejada como ela certamente era, poderia ter olhos de uma mulher pronta para se apaixonar como ela tinha, olhos de uma mulher virtuosa, casta, frágil? Ele não conseguia aceitar aquilo. No ápice da sua desilusão decidiu finalmente falar algo. Inclinou-se para frente e pediu que ela se aproximasse através de um sutil gesto com as mãos. Pôs sua boca próximo ao ouvido dela e perguntou carinhosa e objetivamente: “Quanto você cobra?”
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